
Miriam Moura
50emais
Há cerca de um mês, assisti à peça “O Céu da Língua”, com Gregório Duvivier. Confesso que fui invadida por uma mescla de sentimentos: emoção, satisfação, inveja (no melhor sentido) do autor do texto e admiração pelo talento interpretativo do ator. Enfim, foi um arrebatamento à primeira vista. O conjunto da obra é maravilhoso, encanta a todos no ambiente riquíssimo da língua portuguesa, essa que é, como escreveu o poeta Olavo Bilac, “a última flor do Lácio inculta e bela”.
Sou apaixonada por teatro, os leitores da coluna já sabem disso. E sou, mais do que tudo, apaixonada por palavras, vivo de palavras, vivo de mergulhar em idiomas e de tentar fazer as correlações e ilações possíveis. É uma riqueza, um prazer, um hábito de vida inteira.
Um texto sobre a peça no Jornal da USP descreve assim: “A língua no céu: com humor e leveza, peça transforma linguística em arte”, escreveram os autores, professores Henrique Braga e Marcelo Módolo. Eles elogiam e reconhecem o êxito da peça teatral ao atingir o feito de levar questões de linguagem a um público mais amplo, objetivo que ambos também perseguem na universidade.
No Houaiss, a acepção linguística do vocábulo “língua” é descrita como “sistema de representação constituído por palavras e por regras que as combinam em frases que os indivíduos de uma comunidade linguística usam como principal meio de comunicação e de expressão, falada ou escrita”. É nosso canal de comunicação, de entendimento, de conexão, de percepção da realidade.
Os professores da USP dizem que a peça consegue encantar o público “ao mostrar que a linguagem é, entre tantas outras coisas, reflexo da criatividade humana”. Citam o linguista Carlos Franchi, para quem “o sujeito se constitui na e pela linguagem”.

Gregório Duvivier, graduado em Letras pela PUC-RJ, brinca com a língua, fala sobre a língua, passeia no palco de um lado a outro representando e interpretando a língua portuguesa. E nos lembra, entre sério e irônico, que muito do que hoje é considerado “forma culta” do português foi, em algum momento, tido como erro ou inovação popular. A origem das línguas românicas, ou “neolatinas”, é o latim vulgar.
Entre muitas partes do texto da peça, os professores da USP lembram esta: “Na origem de todas as palavras tinha um poeta. A primeira pessoa que falou em céu da boca era um poeta. A segunda era um dentista”. Lembro que a plateia riu, absorvida pela força retórica e interpretativa de um grande ator em cena, um momento que merece ser conservado na memória.
Acho que, pelo enorme sucesso de bilheteria, totalmente merecido, Gregório Duvivier deveria ampliar o prazo e a extensão da turnê do espetáculo. Todo brasileiro deveria ter oportunidade de assistir, pois celebra a força da nossa língua, da nossa cultura, do nosso idioma.
Essa iniciativa se faz ainda mais necessária em tempos de “brain rot”, eleita em 2024 a expressão do ano pelo dicionário Oxford. O termo, traduzido como “cérebro podre”, reflete a preocupação crescente com os impactos das redes sociais. O brasileiro, que passa em média mais de três horas/dia conectado nas redes, tempo maior do que a média global, é mais vulnerável aos efeitos maléficos do uso de mídias sociais.
Para concluir, deixo você com a íntegra do famoso poema, escrito em 1919 por Olavo Bilac:
LÍNGUA PORTUGUESA
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura;
Ouro nativo, que, na ganga impura,
A bruta mina entre os cascalhos vela …
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceanos largos!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma.
Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

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