
Julinha aprende com entusiasmo
Gustavo Werneck
Na carteira de identidade, o espaço reservado à assinatura do titular traz em letra azul: não assina. A situação não envergonha – pelo contrário, anima – a portadora do documento, que promete na emissão do próximo pegar a caneta com jeito e escrever certo, por linhas mais certas, o nome inteiro. No mês em que completa 80 anos, Julinha Maria da Silva, que prefere ser chamada de Índia ou Júlia, se dá um presente para abrir as portas do conhecimento, encher o coração de orgulho e iluminar o rosto de alegria. “Ainda tenho dificuldades para ler umas palavras, mas já sei escrever o meu nome todo”, diz a filha de um índio com uma baiana e nascida “no mato entre o Norte de Minas e o sertão da Bahia”. Morando sozinha numa casa modesta em Santa Luzia, na Grande BH, Júlia faz planos para o futuro e não esquece um passado que ressurge às vezes e faz brotar lágrimas amargas sob os óculos de grau.
Todos as manhãs, menos nas de domingos, faça chuva ou sol, Júlia pega o ônibus no Bairro Bonanza e vai para a escola, no Centro, onde tem colegas de todas as idades. “Gosto de estudar e nunca tive oportunidade de aprender a ler e a escrever. Minha mãe não permitia que fosse à aula, então fiquei analfabeta a vida inteira”, conta a senhora de porte miúdo e boa memória, que presta atenção nas explicações da professora Marley Aparecida Carvalho. “Há uns 10 anos me matriculei numa escola, mas cuidava de menino doente necessitado de ajuda. Eram tantas idas aos hospital que quase não sobrava tempo para outra atividade”, revela a mãe de quatro filhos, que adotou mais quatro e agora abraça as letras com o mesmo amor.
Os primeiros anos não foram nada fáceis para Índia, que completou oito décadas no dia 2: “Nasci perto de um cupim, você conhece?, rodeado de pés de alfavaca, alecrim e goiaba. Minha mãe, Luísa, me enrolou na anágua e quis me jogar no rio. Essa foi a primeira vez, entre tantas, que tentou me matar.” O objetivo de Luísa não vingou, pois a menina chorou no exato momento em que chegavam ao local, para cortar lenha, umas amigas dela. “Meu pai, Júlio Francisco da Silva, capinava ali perto e foi chamado. Viu quando chorei pela segunda vez. Fui salva, mas na outra tentativa minha mãe me colocou dentro de um balaio com rapadura e me levou de volta ao cupim, para as formigas me devorarem. Até amarrou a minha mãozinha na boca, para ninguém ouvir o meu choro”, conta enxugando as lágrimas.
Leia mais em www.em.com.br