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As lembranças que tenho do meu avô, tão sério, são bem engraçadas e até afetuosas

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Lembranças que vieram dos olhos de uma criança que morria de medo do avô, sempre sério, mancava de uma perna e falava pouco, quase não me recordo de sua voz. Foto: Internet

Carolina Mattar Costa
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Noite dessas, perdi o sono e comecei a viajar em meus pensamentos. De pensamento em pensamento, deparei-me com lembranças de meu avô materno. Lembranças que vieram dos olhos de uma criança que morria de medo do avô, sempre sério, mancava de uma perna e falava pouco, quase não me recordo de sua voz. O curioso é que, apesar de ser uma figura séria, as lembranças que tenho de vô Duca são engraçadas e algumas até afetuosas.

Eu costumava passar tardes inteiras na casa de meus avós com meus primos e uma de nossas diversões era dar comidas estranhas para meu avô provar. Ele comia cada coisa esquisita e nós ficávamos rindo, achando o máximo.

Na véspera do natal, Vô ficava sempre sentado à mesa jogando paciência, um de seus passatempos preferidos, ao lado da árvore enfeitada e vigiando os presentes. Ah, para os netos era um desafio gostoso tentar enganar Seu Duca. Isso mesmo, tentar, pois todas as tentativas nossas de ver os presentes eram frustradas pelo olhar condenatório do jogador. Hoje, lembrando de seu olhar e de seu sorriso maroto no canto da boca, percebo claramente que era um momento divertido para ele também, uma maneira de ficar próximo e interagir conosco.

Ele criava porcos. Muitos. O dia de matar um deles era um evento. Todos os netos ficavam pendurados no muro que dividia a área de serviço e um terreiro ao lado do chiqueiro. Somente Vô e Fred, o neto mais velho, que costumava acompanhá-lo nos afazeres pelo quintal, ficavam responsáveis pela tarefa. Antes de executar o porco, jogava-se um abacate para o animal, acredito que a intenção era distraí-lo. Era nessa hora que eu abaixava e me escondia atrás do muro. Não tinha coragem de ver a marretada certeira de meu avô.

José Santana, figura bastante conhecida na cidade, foi gerente da fábrica de tecidos e vereador com vários mandatos. Não se lembrava do nome de ninguém, isso era fato. E chamava todo mundo de criatura, inclusive os netos. Os domingos eram sagrados. No final da tarde, ele gostava de ficar sentado no passeio, vendo o movimento da rua. Passávamos de carro e pedíamos informações de como chegar à cidade vizinha, fingindo sermos desconhecidos. Ele começava a explicar e, quando nos reconhecia, Seu Duca soltava um “Vai latir cupim”(nunca entendi essa expressão). Outra hora era “Ah, fedaputa”, e começava a rir. Para nós não tinha nada melhor. Era uma farra.

Em meio a essas lembranças, veio uma especial e, talvez, a mais marcante. Eu estava na adolescência, época em que eu não tinha uma crença religiosa definida. Em uma conversa, não me lembro com quem, me recordo apenas de ter dito que eu só acreditaria na existência do céu, se tivesse uma prova. Pois não é que, na mesma noite, eu sonhei que meu avô, já falecido, veio me buscar na porta de sua casa. Lembro que ele me deu a mão e disse: “Vou levar você para conhecer o céu”. Depois, me trouxe de volta. Não tenho lembrança da parte do céu, mas foi um sonho muito marcante. Eu me lembro que acordei impressionada, pensando que essa era a prova de que eu precisava. Contei o sonho a minha Vó, Clara, que ficou muito emocionada, pois a saudade de seu Duca era enorme.

Não sei quanto tempo fiquei presa a essas memórias e nem quanto tempo levei para pegar no sono. Só sei que valeu a pena! De mil coisas que poderiam passar pela minha cabeça, uma doce lembrança de vô, de uma parte da minha infância. Presentes que a mente nos traz de vez em quando.

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Carolina Mattar Costa é vice diretora de uma escola de primeiro grau.

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