
Márcia Lage
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Dois filmes sobre reações familiares ao envelhecimento – um no cinema e outro na Netflix – abordam a pressa que os filhos têm para se verem livres da convivência com alguém cujo declínio cognitivo parece ter começado.
Um deles – Um Toque Familiar – é recentíssimo e está em cartaz nas boas salas de cinema. Considerado um filme delicado sobre o Alzheimer, inspirado na avó da diretora, Sarah Friedland, é, na minha leitura, uma triste denúncia sobre oportunismo e desrespeito para com o idoso.
A atriz Kathleen Chalfant interpreta Ruth, uma senhora de 80 anos que adora cozinhar e que mora sozinha numa bela casa com jardim. Ela é totalmente independente para se cuidar e se vestir. Prepara com estilo o almoço para esperar o filho, que chega nervoso e cheio de truques para levá-la para uma casa de repouso.
Veja o trailer:
Ruth não reconhece o filho. Pensa que ele é um pretendente. Só isso. No mais, ela usou a faca com destreza para cozinhar, vestiu-se com esmero, se maquiou sozinha e troca com o visitante uma conversa inteligente e sóbria sobre arquitetura e literatura. Não precisava ser internada. Precisava, no máximo, de uma pessoa para lhe fazer companhia em casa, levá-la para passear, estimular sua memória e a prática de exercícios.
O que se segue é revoltante. O filho faz a mala dela, interna-a numa luxuosa casa de apoio e, tratada como os demais internos, ela vai se entristecendo. No início, ela tenta mostrar que é ativa, chega a produzir o café da manhã para todos, com o requinte de que é capaz. Mas é empurrada cada vez mais para o abismo do Alzheimer, até que a doença se instala de verdade.
No intervalo da transformação de uma pessoa com pequenos lapsos de memória, em uma silenciosa rendição, vemos o filho desocupando a casa dela para vender ou coisa assim, sem o menor respeito por sua história e suas memórias. Enquanto a neta, que não aparece para visitá-la, se apropria de seus casacos.
A cobiça pela herança é também o tema do filme argentino “27 Noites”, do diretor Daniel Hendler, no catálogo da Netflix. Hendler faz o papel do psiquiatra forense convocado pela Justiça, para analisar a denúncia da senhora Martha Roffman, internada numa clínica psiquiátrica por artimanha das duas filhas.
Veja o trailer:
Martha, vivida pela atriz Marilu Marini, tem 83 anos, é culta, livre, inteligente e rica. Viúva, trabalha com amigos LGBTQ+ na construção de um espaço multicultural para abrigar suas obras de arte e estimular a produção artística local.
As filhas alegam que ela está demente, que está dilapidando o patrimônio familiar e, numa cena de traição de arrancar lágrimas da plateia, internam a mãe por 27 noites, se valendo de um laudo falso produzido pelo diretor da clínica.
Quando Martha escapa do hospício com a ajuda dos amigos, percebe-se que além do desejo de vigiar o patrimônio que herdarão, as filhas vêm a mãe com preconceito. Porque ela namora, dança, bebe, se diverte, dá festas. Tem vida própria, personalidade alegre, é mais moderna que as duas, que vivem na amargura de suas escolhas convencionais.
O longa é baseado em uma história real que levou a Argentina a proibir a internação compulsória de pessoas e a aprovar a lei antimanicômio, a exemplo do Brasil.
Os dois filmes são um alerta aos idosos sobre manipulação psicológica, preconceito e abuso dentro de casa. São tristes de ver. Mas vale a pena.
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