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À medida em que vou envelhecendo, me distancio mais de mais do carnaval. Quando mais nova, como quase todo jovem, gostava da folia, dançando nos bailes e brincando de “Zé Pereira” nas ruas, no interior de Minas Gerais.
Hoje, já septuagenária, prefiro me recolher, aproveitar o período carnavalesco para ler, escrever, dar longas caminhadas, ficar mais próxima da natureza e me recarregar com energia pura.
Nesta crônica, a jornalista Ruth Aquino conta que está fazendo o mesmo durante o carnaval deste ano. “Já fugi. Para as montanhas de Bocaina de Minas”, escreve ela, explicando: “Decidi radicalizar, num retiro Detox perto de Mauá”, na divisa entre Rio e Minas.
Trocou a confusão do Rio nesses muitos dias da carnaval pela paz do campo. ” Escrevo ao som de cigarras, que no verão cantam não importa a hora do dia. Pela janela, vejo hortênsias e araucárias” – descreve.
Leia o texto completo:
Já fugi. Para as montanhas de Bocaina de Minas, logo depois de Visconde de Mauá. Escrevo ao som de cigarras, que no verão cantam não importa a hora do dia. Pela janela, vejo hortênsias e araucárias. Queria ser especialista em pássaros, para identificar trinados e gritos. A pequena trilha conduz a um rio opulento, plácido e limpo. A cabana onde estou se chama Gaia, a deusa da Terra, mãe de todos os deuses, nascida do Caos.
Isso não quer dizer que eu odeie o Carnaval. Minha relação com essa festa popular é ambígua. Criança, adorava me fantasiar. De havaiana, pirata e jardineira. Adolescente, fui odalisca, aproveitava os bailes para flertar, beijar e namorar. Saí muito em blocos, quando não precisava estar alcoolizada para me esbaldar. Até hoje, sou fã da criatividade carioca nas fantasias. A irreverência, o statement cultural e político nas máscaras. A sedução.
Admiro a exaltação – ou privação – dos sentidos nas ruas, nos desfiles, nas rodas de samba. Mas prefiro me distanciar. Hoje, só fico no Rio se for para ir à praia bem cedo, ler, assistir a séries e me movimentar a pé, jamais de carro ou táxi ou ônibus ou metrô. A cidade fica intransitável e ainda mais mal-educada. Os foliões flutuam em outra dimensão, uma mistura felliniana do real e do imaginário.
Há exatos dez anos, em 2015, minha mãe morreu no domingo momesco. Me senti estranha no ninho, me deslocando para a cremação. Passei por rapazes urinando nas árvores e nos muros. Vi atropelados levados em maca. Assaltados gritando. Garotos forçando garotas a beijar na boca em moto contínuo. Forçavam mesmo. Bêbados se jogando em cima dos carros. Muito lixo. Cenário de fim do mundo. Ou assim me parecia, eu sóbria e de luto.
Para quem não quer sambar, pular e se embebedar, pior do que ficar no Rio é viajar na véspera ou no sábado de Carnaval. E escolher como destino a Região dos Lagos. As filas de carros engarrafados nas estradas, e nesse calor extremo, me parecem um sério exercício de masoquismo. Aeroportos são o mesmo inferno. Não se dribla o êxodo mudando a hora da saída. Mas, tem gente viciada nisso.
A palavra “carnaval” tem origem no latim carne levare, que significa “adeus à carne”. Levei este ano ao pé da letra. Escolhi fazer um retiro chamado Detox, de “alimentação viva” e saudável. Num sítio perto, comprei cogumelos brancos, recém-colhidos. Em Mauá, parei para comprar uma garrafinha de cachaça com mel, perdição divina. A orientadora do Detox não vai me cancelar. Não tenho nenhum problema de peso ou de alcoolismo.
O retiro promete um Reset Vital. Além do banho de rio, sessões de banho de ar – que ainda vou descobrir do que se trata. Vários shots “da imunidade”. Meditação. Desjejum em silêncio. Aulas de plantio de brotos e sobre a arte da germinação. Sucos verdes. Tâmaras substituindo o açúcar.
Receitas coloridas de vegetais e legumes. Crus. Um jantar às cegas. Ceia em torno da fogueira e sob as estrelas a 16°C – a temperatura cai mais de dez graus à noite,. “Doces do bem”. Saunas. Massagens e tratamentos faciais. Não sei se sobreviverei, conto depois.
Afinal, ainda estamos aqui. Os brasileiros juntos, planetariamente, no Oscar, numa torcida tão passional e tropical, que o mundo nunca viu. Por Fernandinha e Waltinho. Pelo cinema brasileiro. Pela família do Rubens Paiva e por tortura nunca mais.
A gente trabalha o ano inteiro por um momento de sonho. É a grande ilusão do Carnaval. E viva Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
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