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Jornalista: “Eu fiz aborto. Não me orgulho, nem me arrependo”

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Ruth Aquino trabalhou muitos anos no exterior e é uma das grandes jornalistas do país

Maya Santana, 50emais

O aborto é um assunto polêmico no Brasil. Sempre foi e agora mais ainda com a proximidade da posse do novo governo, em menos de três semanas. A futura ministra da Mulher, Família e Direitos humanos declarou abertamente, há poucos dias, “sou contra o aborto,” em linha com o novo presidente. Assim, achei no mínimo corajosa a decisão da jornalista Ruth Aquino de contar, em um artigo no Globo, sua experiência como alguém que já se submeteu a um aborto. Além de se manifestar sobre a posição da nova ministra em relação ao tema, Ruth, avó de dois netos e uma das grandes jornalistas do Brasil, dá um depoimento franco, sóbrio e honesto. E conclui: “Eu fiz aborto. Não me orgulho, nem me arrependo.” O aborto é uma questão de saúde pública no Brasil. Só para dar uma ideia, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA)divulgada em 2016, cerca de 500 mil brasileiras realizaram um aborto clandestino. Lendo as considerações da jornalista, me veio à cabeça as palavras do ministro da Saúde(2007), médico José Gomes Temporão: Se homens engravidassem, o aborto estaria liberado no Brasil há muito tempo.

Leia o artigo de Ruth Aquino:

Eu lia um pequeno livro, recém-publicado no Brasil, “ Simone Veil – Uma lei para a História ” , sobre a legalização do aborto na França, em 1974, quando a pastora evangélica e advogada Damares Alves foi escolhida como a nova ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Gelei. Com todo o respeito pela fé de Damares, pastora da Igreja Quadrangular, não dá certo enquadrar um país laico em um conjunto de crenças religiosas. Mas Damares acha que tem tudo a ver. Há dois anos, ela afirmou em culto em Belo Horizonte: “É o momento de a igreja ocupar a nação”.

Para Damares, “a mulher nasceu para ser mãe”, porque “quem manda são as regras biológicas, que nos fizeram com peito, útero, ovário e trompas” (não sei se a futura ministra esqueceu alguma coisa). Nada mais natural, portanto, que Damares considere aborto um crime. O problema não é esse. Damares pode damarar à vontade. O problema é o Brasil insistir em pecar na origem. Na França, há 44 anos, uma mulher, sobrevivente do Holocausto, defendeu com discurso impecável, sereno e racional a legalização do aborto perante um Parlamento de maioria hostil, com apenas 2% de mulheres eleitas. Essa mulher, como Damares, era advogada. Mas não era ministra da Família. Era ministra da Saúde. Seu nome era Simone Veil.

Foram 25 horas de debates intensos. Ao final, a lei foi aprovada para que nenhuma mulher fosse presa ou morta por precisar ou desejar interromper uma gravidez na França até dez semanas de gestação. E nem por isso o número de abortos aumentou entre francesas. Alguns anos antes, em 1971, a revista “Le Nouvel Observateur” publicou um apelo redigido por Simone de Beauvoir e assinado por 343 mulheres que declararam ter abortado, infringindo o Código Penal. Entre elas, Marguerite Duras, Françoise Sagan e Catherine Deneuve. Em 1973, 330 médicos assinaram outro manifesto, no qual afirmavam ter praticado abortos. Hoje, o prazo legal para interromper uma gravidez na França é de 12 semanas. Foi ampliado em 2001.

No Brasil, enquanto aborto for considerado uma questão moral e policial, continuaremos matando, algemando e mutilando milhares de brasileiras. As ricas fazem abortos seguros. A maioria absoluta, mulheres pobres, faz abortos clandestinos. É hipocrisia e egoísmo fechar os olhos para essa realidade.

Quando diz que deseja “um Brasil sem aborto”, Damares insulta o bom senso. Desculpe, ministra, não existe e não existirá país sem aborto. É louvável sua intenção de criar ou pressionar por políticas públicas de planejamento familiar, para reduzir o risco de gestações indesejadas, precoces ou frequentes demais. Já não era sem tempo. A educação sexual nas escolas também é importante e não pode ser circunscrita ao lar. Tem que mudar isso aí. Quando o aborto foi legalizado na França, faziam-se ali 300 mil abortos clandestinos. Aqui, a estimativa é de 500 mil. O Brasil só admite aborto em casos de estupro e risco de morte para a mulher, além de casos de fetos anencéfalos.

Hoje, eu me sinto quase subversiva defendendo a autonomia da mulher em relação a seu corpo em meu país. Nenhuma mulher, acredito, é “a favor do aborto”. Mas sim do “direito de abortar” até um período seguro, determinado por médicos. A escolha dificilmente é desprovida de conflito e dor. É infindável o debate sobre o início da vida. Mas a religião não ajuda a jogar luz sobre a discussão.

Para Damares, “se a gravidez é um problema que dura só nove meses, o aborto é um problema que caminha a vida inteira com a mulher”. Discordo. Gravidez só é problema quando é indesejada. Caso contrário, é, sim, bênção.

É injusto, ineficaz e criminoso submeter mulheres a risco de morte e prisão por abortar. Uma vez escrevi um texto, publicado na revista “Época”, sobre um documentário sensível e revelador da paulista Carla Gallo, “ O aborto dos outros ” . Vale a pena escrever o parágrafo final de novo, porque, além de filhos, hoje tenho netos. Acho que fui feita para ser avó, Damares. Mas não só.

Eu fiz aborto. Não me orgulho, nem me arrependo.

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