Ícone do site 50emais

Novo coronavírus leva embora o nosso grande Aldir Blanc

 class=
Ele é autor de músicas geniais, como “O bêbado e o equilibrista”, que compôs com João Bosco Foto: Alaor Filho?AE

Ha pouco mais de uma semana, publiquei aqui no 50emais um artigo sobre a internação do músico e escritor carioca Aldir Blanc, infectado com o novo coronavírus.

Dias depois, alguém me perguntou sobre o estado de saúde do artista. Piorou ou melhorou? Por mais que tentasse, não consegui obter qualquer informação sobre como ele estava passando.

Esta manhã, abri o computador para ler os jornais. E a notícia trágica estava lá: “O escritor e compositor Aldir Blanc morreu aos 73 anos na madrugada desta segunda, 4, no Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio. Ele estava com covid-19 e seu quadro de saúde era considerado grave” – diz a reportagem de Júlio Maria, publicada pelo Estadão.”

Numa época tão triste como a que estamos vivendo, é realmente um golpe saber do desaparecimento desse que é um de nossos maiores artistas. E pensar que ainda tem gente que não acredita na maldade desse vírus. Todo brasileiro deveria estar de luto nesse 04 de maio.

Leia um trecho da reportagem do Estadão:

Hélio Delmiro estava fazendo uma live de sua casa, sozinho, quando um de seus internautas avisou sobre o compositor Aldir Blanc. “Ele está internado”. Visivelmente transtornado com a notícia, o guitarrista Hélio tentou disfarçar, procurou a partitura de uma música de Aldir para tocar, não encontrou, e passou a perguntar “o que houve com Aldir, meu Deus.”

Aos 73 anos, Aldir Blanc estava mesmo internado com suspeita de covid-19. Havia sintomas de infecção urinária e de pneumonia. Sua filha Isabel, sem recursos para manter o pai internado, chegou a pedir doações para fazer a transferência e o tratamento do artista em uma página de Facebook. 

Esta é uma de suas músicas mais apreciadas:

Aldir Blanc deixa uma das obras poéticas mais robustas à música brasileira, sobretudo com suas composições a partir da parceria com João Bosco, nos anos 1960, para servirem Elis Regina de material fresco. Vieram Bala com BalaO Mestre-Sala dos MaresCaça à Raposa e O Bêbado e a Equilibrista, de 1979, assumida pelo País como uma espécie de hino contra a ditadura militar para celebrar a volta dos exilados políticos ao Brasil com a garantia de que não seriam presos pelos militares. Ela se tornaria sua obra mais conhecida, com versos que ficariam maiores que seu próprio nome, como “A lua, tal qual a dona de um bordel / Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel.” Era uma pequena mostra de como pensava Aldir, juntando gente mundana com a lua das realezas, dando vida à estrela e criando expressões como “um brilho de aluguel.”

Leia também: Brasileira conta como vive a quarentena sozinha na Califórnia

Aldir ia fundo quando decidia descer aos porões da alma. Quando escreveu Fantasia, fez isso aqui: “Custei a compreender que fantasia / É um troço que o cara tira no carnaval / E usa nos outros dias por toda a vida / Dizendo: “Olá! Como vai?” e coisas assim / O nó da gravata apertando o pescoço / Olhando o fundo do poço e rindo de mim.” Sim, incomodava, porque nós também poderíamos ser o cara da gravata. Sua invasão de verdades inconvenientes fazia com que o olhássemos torto a cada vez que entrava sem bater, colocando um espelho diante de cada um de nós e traficando-se em canções de parceiros como Cristóvão Bastos, que fez com ele Resposta ao Tempo para Nana Caymmi cantar e, de novo, nos invadir de raiva:

“Batidas na porta da frente / É o tempo / Eu bebo um pouquinho / Pra ter argumento / Mas fico sem jeito / Calado, ele ri / Ele zomba / Do quanto eu chorei / Porque sabe passar / E eu não sei.” Mais à frente, o jogo vira: “Respondo que ele aprisiona / Eu liberto / Que ele adormece as paixões / E eu desperto / E o tempo se rói com inveja de mim / Me vigia querendo aprender como eu morro de amor pra tentar reviver / No fundo é uma eterna criança / que não soube amadurecer / Eu posso / ele não vai poder me esquecer.”

Aldir era Aldir Blanc Mendes, um carioca nascido a 2 de setembro de 1946. Um médico especializado em psiquiatria que deixou de clinicar em 1973 para se dedicar apenas à composição. Antes, já vinha tateando o meio artístico criando A noite, a maré e o amor em 1968, com Silvio da Silva Junior, para o 3º Festival Internacional da Canção da TV Globo.

Um ano depois, classificou outras três para outro festival, o Universitário da Música Popular Brasileira. De esquina em esquina (com César Costa Filho), foi defendida por Clara Nunes; Nada sei de eterno (feita com Sílvio da Silva), teve a interpretação de Taiguara; e Mirante (com César Costa Filho), veio na voz de Maria Creuza. Depois de mais festivais, buscou novos parceiros, como o violonista Guinga, com quem fez Catavento e Girassol, Nítido e Obscuro e Baião de Lacan, entre vários outras.

Leia também: Ficar em casa e exercitar a paciência é o que precisamos fazer

As últimas duas décadas foram de pouco convívio entre Aldir Blanc e o mundo que não lhe interessava. Cada vez mais, entrevistá-lo se tornava uma missão improvável, quase impossível, preferindo o e-mail ao contato pessoal ou telefônico.

Recluso, era como se Aldir estivesse farto de oferecer flores ao deserto, lembrando um personagem do cineasta Pedro Almodóvar. Ao apontar para um poeta de braços cruzados, um homem diz ao outro: “Veja, aquele é um dos maiores poetas deste século.” “É mesmo, e eu posso falar com ele?” “Não, ele não escreve nem fala mais. De uns tempos para cá acha que o mundo não merece mais as suas palavras.”


Sair da versão mobile