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Num domingo radioso, o inesperado adeus

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Foi naquele dia, quando apenas eu e a minha mãe estávamos no casarão, que a vida escolheu para levá-la

Maya Santana, 50emais

A vida é pérfida. Sempre que pode nos dá uma bofetada. E é quando menos esperamos.

Passei muito tempo trabalhando fora do Brasil. Decidi voltar e fui morar na cidade onde nasci, para ficar perto da minha mãe, então, com mais de 80 anos. Tinha uma relação toda especial com ela. Minha mãe estudou até o quarto ano primário apenas pois, sendo muito pobre, desde menina teve que trabalhar. Sua sabedoria, no entanto, aliada à fina sensibilidade, faziam dela o centro de tudo na nossa casa.

Era uma casa ampla, quase misteriosa, com suas  muitas salas, corredores e quartos suficientes para me abrigar e a meus 11 irmãos. Tudo naquele nosso mundo era exagerado, inclusive o número de pessoas que transitava ali diariamente. A porta da frente estava sempre aberta.  Nossa cidade era relativamente pequena. Todo mundo entrava. Crescemos assim: rodeados de gente por todos os lados, de manhã à noite.

Depois, adultos, cada um seguiu seu destino. Alguns se casaram, outros não. Dois ou três viajaram, foram morar longe. Eu fui uma delas. Saí para o mundo. Depois de muitos anos vivendo no exterior, decidi deixar a vida de estrangeira para trás e retornar. Estava envelhecendo, queria voltar a viver no Brasil.

Desembarquei em São Paulo em maio de 2002, depois de quase 17 anos residindo na Inglaterra. Muita alegria nesse reencontro com as minhas raízes. Nos quase sete anos seguintes, dediquei-me a cuidar da minha mãe. Troquei a vida atribulada de Londres pela rotina caseira no interior de Minas. Vivíamos em paz naquele pequeno oásis que era nossa imensa casa, com seus cômodos frescos, seu terreiro colorido pelas incontáveis espécies de flores e o extenso quintal, cheio de memórias dos tempos de infância, quando eu e meus irmãos passávamos horas brincando entre as árvores frutíferas –  mangueiras, abacateiros, goiabeiras, pessegueiros, jabuticabeiras, bananeiras, laranjeiras, amoreiras, pitangueiras, cana

de açúcar. Tudo ali, ao nosso alcance. Morávamos naquele mesmo lugar há mais de 60 anos. Quando voltei, estava exatamente como deixei. Minha mãe costumava descer, passar pelo galinheiro e, depois, passear no meio das árvores, detendo-se aqui e ali. Tínhamos um esquema para nunca deixá-la fora do alcance dos nossos olhos. Era conhecido na minha casa o meu horror à ideia de encontrar a minha mãe morta. Toda vez que se encaminhava para o quintal, eu ficava apreensiva. Temia que tivesse uma tonteira ou tropeçasse em alguma raiz. Sentia verdadeiro alívio quando a via, sempre com alguns ovos nas mãos, voltando de seu périplo.

A rotina vagarosa, mas cheia de paz, seguia.  Até que chegou aquele domingo de agosto. O dia amanheceu luminoso. Eu ficava no segundo andar da casa e vestia a roupa para descer, quando minha irmã mais nova surgiu no quarto, avisando que já estava saindo para o compromisso daquela manhã – distribuir alimentos nos bairros mais carentes da nossa cidade. Ela se despediu e eu desci.

Primeiro, fui ao quarto da minha mãe. Costumava levar a bandeja de café para ela na cama. Como não estava, fui  até o final da comprida sala e olhei no terreiro. Nada. Até que tive a ideia de ir ao banheiro. A porta foi deixada aberta. Lá estava ela. Sentada no vaso, com o corpo todo pendido para frente, um dos braços estendido, como se quisesse apontar para algo.

A vida escolheu um domingo radioso, quando apenas eu e ela estávamos no casarão, para levá-la. E incumbiu a mim de encontrar seu corpo inerte.

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