
50emais
A minha casa é um bom exemplo do que fala a reportagem. Tenho um irmão cadeirante, 80 anos, que sofreu um AVC há quase seis anos. Ele tem quatro cuidadoras. Três delas eram empregadas domésticas. Fizeram curso para aprender os princípios da profissão e estão muito bom em sua nova função.
A reportagem mostra que, enquanto a proporção de pessoas ocupadas em serviços gerais nas residências, como o de limpeza, está diminuindo, uma parcela dos empregados domésticos quase dobrou nos últimos dez anos: a de cuidadores pessoais em domicílio, geralmente de idosos e pessoas com deficiência.
Isso se deve ao envelhecimento rápido da população brasileira. Mais de um quarto dos brasileiros já passaram dos 50 anos.
Até 2070, o Brasil terá mais idosos do que jovens. Segundo o IBGE, 37,8% da população será composta por pessoas com 60 anos ou mais, o que representa 75,3 milhões de brasileiros.
Leia a reportagem completa de Mayra Castro para O Globo:
O trabalho doméstico remunerado está mudando no Brasil. Enquanto a proporção de pessoas ocupadas em serviços gerais nas residências, como o de limpeza, está diminuindo, uma parcela dos empregados domésticos quase dobrou nos últimos dez anos: a de cuidadores pessoais em domicílio, geralmente de idosos e pessoas com deficiência.
Esse movimento reflete o envelhecimento da população, com mais idosos precisando de assistência e menos familiares disponíveis para isso. No entanto, a cara do serviço doméstico no país segue a mesma: majoritariamente feito por mulheres negras em condições precarizadas.
Natural do interior da Bahia, Lucicléia de Oliveira, de 42 anos, trabalhou no Rio por 17 anos como diarista e passadeira. Ela conta que, há sete, expandiu sua área de atuação para o cuidado de idosos:
— Enquanto prestava serviços de limpeza, fui observando que, em muitas famílias, as pessoas precisavam sair para trabalhar e deixar pais idosos sozinhos em casa. Percebi então a necessidade de um cuidado especializado e, como sempre gostei de lidar com idosos, comecei a fazer esse serviço.
Lucicléia não é a única. Embora o total de empregados domésticos tenha se mantido praticamente estável nos últimos dez anos, um estudo do Dieese com base na Pnad Contínua, do IBGE, mostra que, de um total de 5,9 milhões de ocupados em serviços domésticos, 21% (ou 1,24 milhão) eram cuidadores no fim do ano passado. Em 2014, eram 13,9%.
No período, a fatia de profissionais de serviços gerais encolheu de 82,7% para 73,6%. Outro sinal da transformação em curso é que mais da metade das empregadas de afazeres domésticos atuam como diaristas, e mais de 70% dos cuidadores são mensalistas.
Crise do cuidado
Especialistas acreditam que esse movimento é resultado do que chamam de crise do cuidado. Por um lado, há cada vez mais idosos no país. O IBGE projeta que, até 2070, mais de 40% da população terá mais de 65 anos, um envelhecimento mais acelerado que o anteriormente esperado. Com o aumento da longevidade, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) alerta que o número de pessoas com necessidade de assistência prolongada mais que triplicará nas Américas em três décadas.
Leia também: Até 2070, Brasil terá mais idosos que jovens
Outro agravante é a falta de políticas públicas para lidar com o problema, observa Cristina Vieceli, economista responsável pelo Boletim do Trabalho Doméstico do Dieese. No fim de 2024, o governo federal publicou a Política Nacional de Cuidados, mas ainda não há regulamentação, com planos e metas estabelecidos.
— Como falta uma infraestrutura de serviços especializados, tanto públicos quanto privados, como os Centros Dia, onde a pessoa deixa o idoso, vai trabalhar e depois volta para buscar, a gente tem essa questão da contratação de trabalhadoras domésticas especializadas em cuidados, principalmente pelas famílias de classe média e alta — ela diz.
Novos arranjos familiares
É o caso de Cláudia Peixoto, dona de uma corretora de seguros no Rio. Após sua mãe ter um AVC, aos 84 anos, ela sentiu a necessidade de contratar três profissionais para se revezarem nos cuidados dela.
— Trabalho de segunda a sexta, não tenho hora para parar e não consigo abrir mão do meu trabalho para cuidar dela. Mas administro tudo, faço as compras de mercado, vou visitar quase todo dia, levo ao médico. Faço o cuidado, mas não esse cuidado físico — diz.
Estudiosa do tema, Ana Amélia Camarano, economista do Ipea, menciona ainda fatores como casamentos menos duradouros e com menos filhos, que muitas vezes vão trabalhar em outras cidades e ficam longe dos pais idosos:
— Isso tem criado um mercado de trabalho para cuidados, que gera emprego e renda, principalmente para mulheres, que, mesmo no mercado, ainda são as que mais cuidam. Já existem agências e plataformas que oferecem cuidados domiciliares. E agora a doméstica que fica muito tempo na casa da família acaba se transformando em cuidadora quando os patrões envelhecem. Acho que é mesmo a tendência: diminuir a proporção de empregadas domésticas e aumentar a de cuidadores.
Thamíris Silva, de 33 anos, viu nessa área uma oportunidade. Ela trabalha como cuidadora há mais de dez anos, em paralelo ao seu negócio de micropigmentação de sobrancelhas no Rio. Filha de cuidadora, ela fez curso técnico de enfermagem e já trabalhou em agências de cuidado.
— Sou mãe solo de dois filhos, preciso sempre estar correndo atrás para nos manter — ela diz. — Gosto muito de trabalhar com idosos. É uma profissão que exige muita responsabilidade, mas é vista de forma inferior e desvalorizada. Principalmente pelas cooperativas, que muita vezes não repassam para nós nem metade do que o paciente paga.
Apesar de terem escolaridade maior que a de empregadas de serviços gerais, as cuidadoras vivem jornadas igualmente precarizadas, aponta o Dieese, com destaque para a alta informalidade (79% não têm carteira assinada), baixa renda e cargas horárias extensas.
A maior parte é responsável pela renda do seu domicílio, mas a média salarial no ano passado era equivalente a um salário mínimo (R$ 1.482), considerando o piso vigente em 2024, para jornada semanal média de 41,6 horas entre mensalistas. Quando se trata de babás, a renda média é ainda menor: R$ 1.069, com 77,7% de informalidade e jornada semanal mais curta: 37,4 horas.
Pagamento varia
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/H/h/AdTUNtR9eSmLm3Zw4exw/110973217-ec-rio-de-janeiro-rj-08-04-2025-aumenta-o-numero-de-acompanhantes-de-idosos-no-brasil.jpg)
Lucicléia, por exemplo, trabalha como cuidadora em escalas que variam de 8 a 24 horas — já chegou a fazer plantões de 48 horas —, recebendo em média R$ 250 por dia. Cuidadores diaristas trabalham em média 31,4 horas por semana.
— Os valores variam conforme a família — explica. — Por isso acabo atendendo em várias casas. Hoje estou em uma, amanhã em outra. E ainda mantenho alguns serviços de faxina. Trabalho sem parar.
Apesar de atuar na informalidade, ela contribui como microempreendedora individual (MEI) para garantir a aposentadoria. Mas 67,4% dos cuidadores não pagam o INSS.
Juliana Teixeira, pesquisadora e autora do livro “Trabalho doméstico”, destaca que, ainda que trabalhadores de cuidado sejam mais profissionalizados, compartilham nos domicílios a mesma precarização das empregadas. O perfil é similar: 94% dos cuidadores são mulheres, e 64%, negros.
— A antecessora do trabalho doméstico remunerado no Brasil é a mulher escravizada. Há uma dificuldade histórica de entender que o que cuidadoras fazem é trabalho. É como se elas estivessem fazendo o que é o destino delas enquanto mulheres negras empobrecidas — avalia a pesquisadora, acrescentando que a relação afetiva que se cria nesse tipo de serviço acaba reforçando o imaginário de que não se trata de uma trabalhadora doméstica, que deveria ter direitos assegurados, mas alguém “como se fosse da família” que “ajuda”.
Ela também ressalta que muitas dessas cuidadoras ficam sem tempo para cuidar de seus próprios parentes, o que reforça a necessidade de políticas públicas para o tema. Um exemplo é o da técnica em enfermagem Marcia Nascimento, de 42 anos, que cuida de uma idosa cinco vezes por semana, cinco horas por dia, sem carteira assinada. Mãe de dois filhos, ela conta que, quando eles eram pequenos, já teve de deixá-los com a irmã para ir trabalhar.
— Sempre paguei ela e ajudei com as despesas da casa — diz Marcia, que gosta de ser cuidadora, mas tem outras atividades para complementar a renda. — Sinto que as pessoas passaram a aceitar mais a ideia de contratar um cuidador. Antes, tinham dificuldade de colocar alguém em casa, mas virou uma necessidade.
Colaborou Roberto Malfacini, estagiário, sob a supervisão de Alexandre Rodrigues