Márcia Lage
50emais
Luiz captou o espanto do médico ao examinar a tira do electrocardiograma que ele acabara de fazer.
– O que foi, Dr.? Pela sua cara estou para infartar aqui na sua frente!
O médico se recompôs.
– Vamos falar disso depois. Agora, são as perguntas de praxe.
– Fuma?
– Deus me livre!
– Bebe?
– Muito pouco, apenas socialmente.
– Prática atividades físicas?
– Todos os dias, desde os 20 anos de idade.
De olho no computador e no calhamaço de exames de sangue que Luiz havia levado para o risco cirúrgico – exigência do hospital para a colonoscopia que seu geriatra havia pedido – o cardiologista fez várias anotações no prontuário eletrônico, ao mesmo tempo que perguntava:
– Algum caso de diabetes na família?
– Não
– Infarto?
– Meu pai fez ponte de safena aos 50 e morreu de infarto aos 69.
O médico esboçou novo espanto. Era a mesma idade de Luiz no prontuário.
– Vai fazer colonoscopia por que? Rotina?
– Tenho tido muitas náuseas ultimamente, vomito se bebo vinho, de vez em quando tenho tonturas, sudorese, dor de barriga e diarreia, fora os vômitos…então, estamos investigando as causas.
– Seu electrocardiograma deu uma alteração no músculo frontal do coração. Esses sintomas que você relata são dessa possível doença coronária. Os músculos laterais, quando endurecidos, promovem dores no peito. O frontal ataca o estômago. Vou te liberar para a colonoscopia, que é um procedimento muito simples. Mas vou pedir um exame específico para a minha suspeita. Está aqui. Quando tiver o resultado, traga para eu ver. Estendeu a mão ao Luiz e o dispensou rapidamente, como se estivesse com receio de que ele infartasse no consultório.
– Posso morrer a qualquer momento, Dr.?
– Não confio muito em electrocardiogramas. Faça esse exame mais específico e vamos iniciar o tratamento, se der positivo.
– Morrer de infarto é o sonho da minha vida, Dr.
– Mas pode não morrer. Ficar sequelado. Melhor evitar. Vai lá. Faça o quanto antes esse exame. Boa tarde.
Ali mesmo Luiz começou a se preparar para a morte. Foi direto ao Cartório de Notas da cidade e perguntou se eles faziam o Testamento Vital. A moça que o atendeu nem sabia o que era. Chamou a escrivã.
– Nós temos um modelo genérico de Testamento Vital. Custa 160 reais. Mas você pode acrescentar orientações específicas nele. O que você quer ressaltar?
– Quero que não prolonguem artificialmente minha vida, em caso de mal súbito de consequências graves. Que não me entubem nem me deixem em coma por 10 anos, como anda acontecendo por aí. Medicina é para salvar, não para conservar. A fila do SUS é grande demais para um paciente sem chance de viver ficar empatando leito. Que não me deixem sentir dor, acabem logo com a minha agonia e a de todos.
– Entendi. Alguma observação sobre doação de órgãos e sepultamento?
– Quero doar o corpo todo para uma faculdade de Medicina. Eles que escolham a que estiver mais carente de defunto.
– Não quer ser cremado nem enterrado?
– Acho um desperdício. Mas se ninguém quiser o corpo, por causa dos avanços tecnológicos que devem estar substituindo esse tipo de estudo com peças humanas, que me cremem. Depois peguem aa cinzas, adubem uma cova e plantem em cima uma muda de ipê amarelo. Vou adorar ser árvore. Ou servir à ciência.
– Bonito isso do ipê. Gostei. Vou ler tudo agora e, se estiver de acordo, uma cópia fica aqui, outra com você e o documento original você entrega a quem nomeou para cuidar dos trâmites no caso de você não poder gerir seus próprios desejos.
Luiz assinou e saiu do cartório com a leveza de quem não gosta de dar trabalho. Avisou à família sobre o testamento, ninguém o levou muito a sério. Feito estava. Agora era aguardar o novo exame que confirmaria se o coração estava se esgotando.
Na semana seguinte, ele voltou à clínica para o dopler indicado. Quem era o médico? O mesmo que o atendera e o assustara. Fez os exames sem o reconhecer e, ao final, estava exultante: Parabens, sr. Luiz, seu coração é de um atleta. Não vai morrer tão cedo.
– Filho da puta – pensou Luiz. Para um medico, até que esse canalha é bom ator. Fez aquela cara de fim de linha para mim só pra ganhar uns trocados a mais com esse exame?
Chamou os amigos para uma rodada de cerveja. A morte que tivesse paciência. Ele não tinha pressa alguma em virar ipê.
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