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Pelo direito de envelhecer em paz

“Ser mulher não é, infelizmente, um jeito muito confortável de existir nesse mundo.” Foto: Reprodução/Internet

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Apesar das pressões vindas de todos os lados, Tatiana Vasconcelos, uma das melhores apresentadoras de rádio do país, seguiu seu instinto e, em plena pandemia, tornou-se mais uma das milhares de mulheres que assumiram os cabelos brancos.

Com bom humor, Tatiana conta o que mudou na vida dela depois que se tornou grisalha. A primeira delas: “Virei senhora. “Débito ou crédito, senhora?”. “A senhora já foi atendida?”. “Desculpe, senhora”. Acabou o “você”. Isso quando sou vista, claro”, ironiza ela.

Lendo o relato da apresentadora, que tem só 45 anos, eu me lembrei da minha experiência, quando decidi parar de pintar os cabelos, aos 67 anos. Sofri as mesmas pressões para que continuasse a tingí-los e passei a fazer parte, como ela reclama, de um tipo de mulher invisível.

Tatiana também critica a atitude machista da sociedade: homens grisalhos são charmosos. Mulheres grisalhas, desleixadas.

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Esse dia começou no meio da pandemia. Eu era uma ruiva com madeixas lisas de comprimento médio e franja, já um pouco cansada da própria cara. O ano era 2020 e de repente, pum, todo mundo fechado em casa. Inclusive eu e minha ruivice moderna e sensual.

Sabia que por baixo das melenas avermelhadas vivia uma comunidade grisalha – apesar de não enxergar bem o tamanho dela. Impossibilitada por um vírus mortal de ir ao salão e sem habilidades manuais suficientes para tingir os fios no modo doméstico, decidi que os deixaria livres para ser o que são: um misto de castanhos, cinzas e brancos.

Já tive cabelos quase pretos, iluminados, loiros, bem vermelhos, imensos de comprido, médios, repicados, bem curtinhos, com costeleta, com topete, franja curta, média, longa, franja reta, franja desfiada. Então, a decisão não tinha a ver com largar a tinta (embora recomende para a economia doméstica), mas com experimentar um inédito grisalho.

Levou uns meses, o ano virou, até que a transição se completasse e eu me tornasse uma mulher de 43 anos e cabelos curtos e brancos bem aparentes.

As mudanças foram várias. Por exemplo, no dia 1 da minha grisalhice, virei senhora. “Débito ou crédito, senhora?”. “A senhora já foi atendida?”. “Desculpe, senhora”. Acabou o “você”. Isso quando sou vista, claro.

A grisalhice traz uma invisibilidade social estranha e sexual quase palpável. Resumindo, você vira um pouco a tia do rolê – um beijo pra minha sobrinha linda! O que, pensando bem, pode ser interessante para alguém que gosta de observar. É como se a grisalhice transformasse a dinâmica da atração.

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Os olhares mudam, as possibilidades também. É sutil, mas quase dá pra pegar no ar. Não estou certa dessa relação direta, no entanto. Inclusive ando com muita vontade de cobrir os brancos de novo pra fazer uma experiência empírica. Também porque a ideia nunca foi sair da prisão da tinta para ficar na prisão dos tons de cinza.

O homem grisalho é charmoso, já a grisalha é desleixada. O grisalho é maduro, é gato, a grisalha é velha e feia. De onde vem isso? De uma imagem construída por séculos, com grande impulso do mercado da beleza, que estabeleceu e tratou de introjetar na nossa cultura o que é adequado e bonito.

Gosto de experimentar, mas isso não me faz imune às pressões estéticas baseadas sempre em uma aparência jovem. Dito isso: o cabelo foi crescendo, tingi as pontas de azul. E depois de rosa. E a frase que sempre me vem é aquela que passamos a vida toda ouvindo – e muitas vezes reproduzindo: “não tenho mais idade pra isso”.

Essa é uma luta eterna, porque… Hein? Quem é que diz o que é adequado quando se trata do meu corpo e das minhas vontades? Em frente com o azul, em frente com o rosa – que renovei várias vezes. Fui chamada secretamente por amigas de “fã de kpop que faz coraçãozinho juntando o indicador no polegar”? Fui. Rimos muito. Elas me amam e amam o fato de eu estar contente com minhas mechas.

Porém, exposta à câmera diariamente, não foram poucas as vezes em que ouvi “tinge esse cabelo” como uma tentativa de ofensa. “Mulher velha”, portanto, de menor valor – como as bruxas caçadas da idade média até hoje em dia – e inadequada ao que se espera nesse mundo da juventude eterna.

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Nesse sentido, a grisalhice se torna política. Tenho consciência do que representa uma mulher como eu à frente de um microfone e de uma câmera na maior rede de rádios do país todos os dias. E, apesar de não me deixar amarrar por essa representação, gosto dela. Entendo que estar ali (não só ali), com o cabelo que eu quiser, que eu escolher, comunica algo importante.

É gostoso ser atacada ou invisibilizada por isso, como se fosse inaceitável, errado, e não um dado de realidade inexorável? Não é. Mas, de forma geral, ser mulher não é, infelizmente, um jeito muito confortável de existir nesse mundo.

O tempo leva embora o colágeno, mas também a preocupação com opiniões baseadas em padrões irreais. Vencer um pouco essa pressão dá uma sensação libertadora. Pelo direito de envelhecer em paz.

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