
Márcia Lage
50emais
Saltou, de algum velho dicionário do Chico Buarque de Holanda (ele ama pesquisar verbetes) o substantivo procrastinação, que pode ser pecado, vício ou doença, e que vem de braço dado com outra palavra, postergar, cujo sentido é menos grave, mas nem por isso aceito numa sociedade focada em esforço e recompensa.
Procrastinar eu não procrastino. Mas postergo sem culpa e postergarei o quanto quiser, sem medo do inferno. Estou aposentada, ninguém manda em mim. Acordo quando meu corpo pede, vou à academia na hora que me apetece, como quando tenho fome e largo tudo que estou fazendo para dar um mergulho ou ir ao cinema.
Muita gente deve estar vivendo dessa forma por aí, principalmente quem aderiu ao homework. E quem gosta de mandar na vida alheia para obter lucros e dividendos deve estar pagando esse monte de psicólogos, psiquiatras, coachs e influenciadores para gravar vídeos de alerta sobre o assunto.
Porque ambas as palavras formam verbos cujas ações têm a ver – repare bem – com as obrigações do mundo do trabalho ou do mundo doméstico. Se entraram na moda assim de uma hora para outra, deve ser porque as novas formas de viver da era digital estão levando o povo para fora dos muros do capitalismo escravocrata ou do neoliberalismo de luta e meritocracia.
A Procrastinação está associada até à TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade – que deixa as crianças indomáveis e os adultos preguiçosos, chapados no sofá o dia todo vendo TikTok e dando risadas. São pessoas vistas como inúteis, que devem se tratar com fármacos e terapias, para poderem se incluir no grande círculo de progresso que se deseja para a humanidade.
A postergação é uma forma branda da doença e não tem consequências muito graves para a sociedade. Mas a casa pode ficar desarrumada, a pia cheia de louças para lavar e, se o indivíduo trabalha, ele pode deixar para amanhã o que deveria ser adiantado hoje, com danos ao equilíbrio corporativista movido ao ritmo frenético das competições por aumento de salário, elogios e promoções.
O postergador de agora pode ser o procrastinador do futuro. Por isso tantas publicações sobre como reconhecer os sintomas, lutar contra eles e não se deixar distrair por nada enquanto se executa uma tarefa. É com foco total que se doma personalidades relapsas, incapazes de concluir uma obrigação. A continuar nessa leseira, quem posterga ou procrastina pode sair do jogo da vida no primeiro round.
Será que o recado subliminar é esse? A sociedade do consumo está colhendo os frutos que plantou com o abuso das ferramentas tecnológicas para distrair as pessoas, e agora não consegue trazê-las de volta para a máquina arcaica da produtividade? Ou a indústria da saúde está inventando doenças para aumentar ainda mais seus lucros?
Sei não. Só sei que já tem muito famoso por aí justificando seus momentos de calma e deleite com o auto diagnóstico de TDAH; ou até mesmo com um tipo leve de autismo (reparem na força do sugestionamento). Em vez de deixar as pessoas mais neuróticas do que já estão, sugiro aos que mandam no mundo que procrastinem as guerras e não posterguem a paz. Seria de grande ajuda aos que sofrem de verdade com a fome e a desesperança.
Leia também de Márcia Lage:
O poder do exercício, da convivência e da diversidade na academia de ginástica
Os sustos com a saúde na medida em que envelheço
Cidades sem planejamento. Até quando?
Sem amigos, a vida não vale um dente
Vivemos em plena cultura do roubo
Estes tempos sombrios em que vivemos
Marte Um, você não pode deixar de ver
Não vou me deixar acuar por que sou velha
A tecnologia está nos levando para longe de nós mesmos
A paranóia que pode vir com o envelhecer
O diálogo divertido sobre sexo entre a tia sexagenária e a jovem sobrinha
Repito, pacientemente, tudo o que ela fez por mim quando era minha mãe





