Ingo Ostrovsky
Exclusivo para o 50emais
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Minha mãe, dona Ana, nasceu em 1923 numa cidadezinha polonesa chamada Lutzk. Depois da Segunda Grande Guerra a cidade dela passou para o lado da Ucrânia, onde está até hoje. Se mamãe estivesse aqui, teria certamente boas histórias para contar sobre aquela fronteira ambulante.
Os irmãos dela eram judeus comunistas e militavam no movimento que defendia o lado ucraniano da fronteira. Ou seja, eles concentravam todos os ingredientes para ir em cana naquele lugar, naqueles dias. Foram presos pelos poloneses porque eram comunistas, perseguidos pelos alemães porque eram judeus, libertados pelos russos e depois presos de novo por Stálin, que já naquela época prendia amigos, aliados e qualquer um que ousasse desafinar seu monocórdico discurso. O cubano Leonardo Padura conta essa história em seu monumental O Homem que Amava os Cachorros, a obra definitiva sobre a perseguição de Stálin a Trotsky.
Esses meus tios – Isaac e Alexandre – eu não conheci. Morreram na prisão.
Minha mãe, aos 16 anos, fugiu da Polônia com a mãe dela, uma viúva que não deixava de visitar os filhos na cadeia mas teve certeza que um mal maior – Hitler – surgia na Alemanha e ameaçava a todos. Elas deixaram Varsóvia uma semana antes da invasão nazista. Um mês mais tarde, ainda na Europa já conflagrada, ficaram sabendo que o Brasil havia emitido 400 vistos para refugiados. Vovó ficou com o visto 399. Minha mãe com o 400.
Lembrei dessa história vendo e lendo a saga de ucranianos tentando fugir da guerra. A jornalista Cora Rónai, ela também filha de refugiados, escreveu sobre esse drama em sua coluna n’O Globo. Como se decide fugir? O que levar? O que deixar para trás? Como escolher o momento certo? Como suportar a tragédia dos que não fugiram, dos que deixaram para tomar a decisão quando não havia mais tempo, nem condições, nem transporte, nem comida, nem vidas para salvar!
As guerras deixam destruição e refugiados. Qualquer guerra, em qualquer continente. Bertold Brecht contou, em alemão, o drama de um grupo de crianças órfãs – polonesas? ucranianas? – que perambulava pelo inverno da Europa destruída à procura de comida e calor. A elas se juntou um cachorro, o último a morrer de fome.
Um conhecido meu tem uma nora ucraniana. Ela está no Brasil mas toda a família a esperava este mês em Kiev para inaugurar o apartamento que o jovem casal comprara e estava mobiliando. Sonhos desfeitos. Diariamente a família relata o drama que é procurar alimento, ir ao mercado sem saber se haverá comida e, pior, se haverá para onde voltar. Nos últimos dias eles conseguiram algum sossego na casa de uma avó que mora numa rua sem saída ao lado de um parque sem importância estratégica. “Por aqui não passam tanques” escreveram para os parentes brasileiros.
Por quanto tempo? Só Putin sabe! A única certeza que temos sobre essa guerra é que ela vai deixar destruição e gerar refugiados. Mais de um milhão de pessoas já deixaram a Ucrânia, muitas outras as seguirão, a ONU estima que serão 5 milhões de seres humanos sem casa, sem comida. Apenas com a roupa do corpo e a vontade de viver.
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