À mesa do restaurante Charlô, nos Jardins, em São Paulo, não estivemos, no almoço da sexta-feira 1º de março, apenas eu, no papel de repórter, a escritora e convidada de honra Lygia Fagundes Telles e sua secretária particular, Regina Vampré. Para quem nos visse de longe, talvez fosse assim. Lygia, porém, tem o hábito de observar as coisas sempre de perto, de examinar o mundo através de suas frestas, de sondá-lo desde dentro, e me levou a acompanhá-la nisso. Para ela, a pequena mesa que ocupávamos, a um canto do salão, estava cheia. “É preciso ser vidente”, resumiu, citando a fórmula clássica de Arthur Rimbaud. “É preciso enxergar mais do que as coisas nos mostram, ou não vemos nada.” Se ficarmos nas superfícies, a realidade nos engole e patinamos sobre o banal.
Eis algo que não combina com a figura nobre de Lygia: a banalidade. Depois de ler atentamente (como se fosse o trecho de um romance estrangeiro) o luxuoso cardápio da casa, ela se limitou a pedir “um macarrão na água e sal”. Sem manteiga, sem queijo, só o gosto leve da pasta. Para beber, depois de vacilar um tanto, escolheu um copo de cerveja. “Quente”, apressou-se a dizer. Não havia qualquer restrição médica. Tampouco estava gripada. Como uma diva, Lygia – que completa 90 anos de idade em 19 de abril – sabe que deve poupar a voz. Não para os solfejos e trinados, mas para falar. Em absoluto respeito às palavras que, muito mais que a discreta bengala em que é obrigada a se apoiar desde que fraturou o fêmur, são o seu suporte. São as palavras que a conservam com uma lucidez espantosa, cheia de vida e de pé. Não porque lhe sirvam de bengala, mas porque lhe estruturam a alma.
“É preciso ser vidente”, Lygia insistiu e – como se estivéssemos em torno de uma mesa espírita – passou a invocar seres vindos desde longe, muito longe, procedentes de sua memória afetiva e das paisagens de suas ficções. Seres invisíveis, inacessíveis, mas que, no entanto, durante todo o almoço, permaneceram conosco. Almoçaram conosco, mesmo sem tocar na comida. Dividiram aqueles momentos em que Lygia, serena, feliz, falou de sua vida e de sua escrita. Seres que nunca a abandonam e dos quais ela, ainda hoje, se alimenta. Aí sim: sem nenhuma parcimônia.
Entre eles, o primeiro a chegar foi o poeta Vinicius de Moraes. Como sempre, galante e sedutor. Lygia o introduziu na conversa com uma recordação bem-humorada. “Um dia, Vinicius me perguntou: ‘Não quer ter um caso comigo?'” Áspera, ela lhe respondeu: “Não sou uma mulher de ter casos, Vinicius”. Mas o poeta era um homem insistente: “Então você casa comigo?” Lygia não o perdoou: “Mas você é um homem casado, Vinicius!” Abre, então, um vasto sorriso para rememorar a cartada final do poeta: “Nesse caso, descaso”, lhe disse Vinicius. Ela sentiu então que, apesar das fantasias de amor a que o poeta se agarrava, havia no convite uma ponta de verdade. Que ponta? Anos depois, Vinicius já morto, Lygia se encontrou, por acaso, com uma de suas irmãs. Soube, então, que, quando estava grávida, a pianista amadora Lídia, mãe do poeta, leu o “Quo Vadis”, de Henryk Sienkiewicz. Relato em que os dois protagonistas se chamam, justamente, Vinicius e Lygia. Se fosse menina, o bebê se chamaria Lygia – Lidia e o marido Clodoaldo decidiram. Nasceu menino e se tornou Vinicius de Moraes. Leia mais no jornal Valor.