
Márcia Lage
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Sua figura, recostada na grade da rodoviária, era de uma menina. Pouco mais do que uma adolescente, de cabelos cacheados, displicentemente arrumados sob um boné.
O rosto de pele muito fina, avermelhada pelo calor, abrigava olhos pequenos, assustados. Sentiu desconforto quando a abracei e beijei nas duas faces.
Me apresentou a bicicleta, cheia de lama e apetrechos, que não coube no carro. Teve que seguir pedalando até em casa, e quem chegou meia hora depois de mim era um homem.
Um jovem rapaz de 24 anos que, há dezoito meses decidiu fazer duas coisas muito difíceis: experimentar uma nova identidade de gênero e conhecer as Américas em pedal.
Registrado com um nome que serve para ambos os sexos nos Estados Unidos, Elane saiu do extremo noroeste americano e atravessou o Pacífico, cruzou o México, a América Central, o extremo sul da América Latina, deu a volta em Uchuaia, onde o mundo termina, entrou na Argentina, no Paraguai, no Brasil. E vem subindo nosso mapa, há quase três meses, com destino à COP30 (reunião anual da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima) em Belém, em novembro.
Quando aportou em Aracaju tinha desbravado os três estados do Sul, Minas, Rio de Janeiro, a Chapada Diamantina e boa parte da Bahia.
Calcula que já pedalou 20 mil quilômetros e venceu outros mais 60 mil em caronas, barcos, ônibus, caminhões, meios de transporte que alterna com a bicicleta,nos deslocamentos muito longos.

Uma penosa e solitária peregrinação, cujo objetivo maior, talvez, seja se desfazer do homem que a habita e se aproximar, cautelosamente, da mulher que tenta moldar com hormônios.
Está mais magra, mais curvilínea, e arrisca rebolar no forró e em outras danças típicas que encontra pelos caminhos.
Nessa longa jornada, Elane vem sendo amparada por uma rede de pessoas conectadas por amigos de amigos.
Traça sua rota de acordo com os apoios, abrigos e acolhimentos que terá. Dessa forma, conhece dos países que visita muito além de atrações turísticas: frequenta casas, experimenta comidas, observa hábitos, apreende modos, cultura, diversidade.
Depois da COP30, ela pretende se embrenhar por rios e florestas, tribos indígenas e povos ribeirinhos, até transpor outra fronteira e alcançar a Guiana Francesa, de onde retornará ao ponto de partida.
Na subida de volta ao estado americano de Montana, Elane ainda passará pelo Panamá e por Cuba, entre outros países do Caribe que não visitou na descida. Não tem pressa de concluir a aventura, da qual se apropria para escrever um livro.
De quebra, aperfeiçoou o espanhol e está aprendendo rapidamente o português. Publica nas redes sociais relatos e fotos das viagens, com foco principalmente nas questões da escravidão, do meio ambiente e do patrimônio histórico das incontáveis cidades que conheceu.
Por mais dura e arriscada que esteja sendo sua travessia, garante que não sofreu nenhum tipo de abuso ou preconceito até agora.

Sua aparência feminina é precedida de uma força masculina destemida, que lhe confere autoridade e afasta malfeitores.
Como Orlando, o personagem de Virginia Wolf que um dia acorda mulher, Elane segue transitando entre seus dois polos.
Por enquanto, adota uma identidade não-binária, que aceita ser chamada no masculino ou no feminino, ou na neutralidade dos pronomes. Tanto faz.
Até chegar em casa, terá que encarar centenas de desafios, pedalar mais alguns milhares de quilômetros. E quem vai descansar dessa longa experiência será, enfim, uma outra pessoa.
O que foi visto, sentido, vivido não cabe numa simples definição de gênero ou de viagem. É uma revolução íntima posta em movimento.
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