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Achei uma dádiva que ela partisse assim

Gal Costa morreu em São Paulo, na quarta-feira, 10 de novembro, de causas não divulgadas. Foto: Marcos Hermes/Divulgacao. Cantora Gal Costa

Márcia Lage
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Quando soube da morte de Gal Costa um encadeamento temporal me foi evocado. Cresci sob a influência dela e a vi mudar, envelhecer e morrer, da mesma forma que testemunhei o andar do Brasil e o meu proprio caminhar até aqui. Até agora.

A primeira vez que vi Gal ela não estava só. Estava com outros três gênios baianos que fizeram a minha cabeça em todos os sentidos: Caetano, Gil e Bethânia.

De branco, pés descalços, o quarteto entrou de mãos dadas no palco do Ginásio Mackenzie, em Belo Horizonte, cantando “Doces Bárbaros Jesus, sabe bem quem é otário, o peixe no aquário nada… Alto astral, altas transas, lindas canções. Afoxés, astronaves, aves, cordões. Avançando através dos grossos portões, nossos planos são muito bons”.

Não entendi patavina, como se dizia na época, porém, não era para entender. Era para absorver uma receita de atitude, de transgressão, de liberdade, de rebeldia, de transversalidade, de quebra de padrões comportamentais, estéticos, culturais.

Era para virar uma página, ignorar a ditadura, desprezar o estabelecido, traçar um caminho novo, dar um salto quântico para o futuro e a modernidade.

Projeto muito bom, de fato. Um movimento tropicalista visceral, nacionalista e sem fronteiras ao mesmo tempo, que buscava o novo e resgatava o velho, valorizando as tradições, voltando o olhar para a América Latina e sua diversidade, fazendo disso tudo uma sopa psicodélica transformadora.

Passei toda a minha vida seguindo essa galera, admirando muito o que fizeram e continuam fazendo, com coerência e propósito.

Gal Costa fez o mulherio brasileiro cachear os cabelos, usar batom vermelho, saias longas e bustiê. Fez todo mundo cantar de novo uma música que nossos pais cantavam, Índia. Com as pernas de fora e um movimento de abre e fecha sanfonado, quase exibindo a calcinha. Brejeira. Sexy. Atrevida. Dona total do corpo e da voz.

Hippie chique, fora dos padrões mercadológicos, fazendo tudo ao contrário do que exige a fama. Não posou nua, mas cantou com os peitos de fora. Não seguiu moda, criou a sua. Pisou na história com a leveza e a beleza de um pássaro. Pisou, sapateou, apagou o mofo e escreveu por cima: meu nome é Gal.

Eu a vi ficar velha, entrar na menopausa, engordar, criar rugas e papadas, vestir roupas caretas, virar senhora. Senhora de si mesma e da voz. A divina voz.

Essa maturidade ao encarar a passagem do tempo sem deixar de ser vanguarda serviu de exemplo para a minha jornada pelo envelhecimento.

Quando soube de sua morte repentina, aos 77 anos, não fiquei triste. Achei uma dádiva que ela partisse assim, sem sofrer as agruras de uma longevidade que machuca, que incapacita, que gera pena. Estava com a agenda cheia de trabalhos novos, com os Doces Bárbaros ao seu lado, tocando a pauta da modernidade, como sempre.

Gal, Caetano, Gil e Betânia são imortais. Daqui a mil anos suas músicas e suas atitudes ainda estarão fazendo a cabeça de muitas gerações. Caminham na luz, anos-luz à nossa frente. A gente só pode aplaudir. Embevecidos por compartilhar com eles o mesmo espaço/tempo.

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