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Ninguém sabe a dor de envelhecer sendo Madonna

A cantora apareceu assim na grande festa internacional da música, no início de fevereiro. Foto: Reprodução/Internet

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Muito interessante e diferente da maioria das mulheres a opinião da antropóloga Mirian Goldenberg sobre as críticas recebidas por Madonna, por ter comparecido à festa de entrega do Grammy, no início de fevereiro, nos Estados Unidos, com o rosto muito retocado.

A antropóloga se incomoda com o fato de a cantora ter sido criticada, em termos duros, sobretudo por mulheres. “Enxergar e compreender meus próprios conflitos e ambiguidades me ajudam a parar de julgar e condenar outras mulheres”, observa ela.

E defende, com argumento incontestável, a cantora: “Ninguém sabe a dor e a delicia de envelhecer sendo Madonna”, afirma, completando: “Madonna vai envelhecer do jeito que sempre viveu: sendo Madonnal”

Leia o artigo da autora, publicado originalmente pela Folha de São Paulo:

Na semana passada, uma jornalista me perguntou: “O que você achou do rosto inchado de Madonna no Grammy Awards 2023? Você acha que ela tem pånico de envelhecer e é escrava da ditadura da juventude? Ou que ela continua transgressora e não liga para a opinião dos outros? Será que ela fez de propósito para lacrar e provocar polémica? Ela só tem 64 anos, por que está tão monstruosa, irreconhecível e deformada?

Por que ela faz tantas loucuras e não aceita o próprio envelhecimento? Sou tão fá, não esperuva isso da Madonna”. A própria Madonna, que foi criticada e massacrada no mundo inteiro, já respondeu dizendo que qualquer pessoa ficaria horrorosa se tirassem uma foto dela com uma lente X numa distância Z e ângulo Y.

Para mim não importa se a lente era assim ou assado, se foi o ângulo da foto, se ela está realmente com esse rosto nem a quantidade de procedimentos que a Madonna fez ou ainda irá fazer durante a vida.

Lógico que posso estranhar não gostar, achar melhor que as mulheres não façam tantas loucuras para não envelhecer em uma cultura onde impera uma verdadeira ditadura da juventude.

E exatamente por constatar que existe um enorme sofrimento com o pânico da velhice que pesquiso e escrevo sobre envelhecimento, liberdade e felicidade. Há algumas décadas, criei o conceito de que, no Brasil, o corpo jovem é um ver dadeiro capital, especialmente para as mulheres.

Sei lá o que a Madonna fez com o seu corpo, só sei que me incomodou profundamente  o fato de tantas mulheres massacrarem a Madonna pelo seu rosto “deformado, irreconhecivel, monstruoso, horroroso, inchado” e coisas muito piores.

Eu também me sinto extremamente criticada e massacrada, principalmente pelas mulheres, apesar de nunca ter feito qualquer procedimento, cirurgia, botox, preenchimento, etc.

Sou patrulhada por algumas mulheres para me “cuidar mais”, para não ficar uma velha ridícula e decrépita, para corrigir as pálpebras caidas, levantar os peitos, dar uma puxadinha no pescoço, pintar o cabelo ou, ao contrário, deixar os fios brancos.

Eu consigo enxergar três caminhos para experimentar o meu próprio envelhecimento: e a velhofobia -o pánico de envelhecer, o olhar negativo que só enxerga feiura, doença, decadência e perda na velhice; a velheuforia – a ideia de que posso fazer todas as loucuras que quiser porque já estou velha, tudo o que nunca fiz antes, do tipo é agora ou nunca mais: a velha autonomia- a sensação de que, pela primeira vez na vida, sou realmente livre para ser eu mesma, sem me preocupar com a opinião e julgamento dos outros.

Em maior ou menor grau, convivo com essas três sensações dentro de mim. Então, eu posso ser libertária e independente em muitos aspectos da minha vida e, ao mesmo tempo, me sentir prisioneira da ditadura da juventude, fazendo loucuras para não envelhecer. Posso ligar o foda-se para a opinião dos outros e, simultaneamente, ter vergonha de ir à praia de biquíni.

Posso ser muito feliz no amor e no trabalho e, também, sofrer com o pescoço horroroso e com os quilos a mais. Posso ser uma mulher livre, autô noma e independente e, paradoxalmente, prisioneira dos preconceitos e padrões de beleza, juventude e corpo que me tornam refém do reconhecimento e da aprovação dos outros.

Em vez da conjunção “ou”, eu prefiro usar o “e”. Enxergar e compreender meus próprios conflitos e ambiguidades me ajudam a parar de julgar e condenar outras mulheres. Em vez de tentar me aprisionar em um lado ou de outro, prefiro compreender e aceitar que sou (somos)muito mais complexa e contraditória.

Para mim, os piores venenos para a liberdade, para a felicidade e para a beleza da maturidade são a comparação, a inveja e a vergonha de ser eu mesma. Consigo enxergar que eu sou, e cada mulher também é, única, singular e incomparável.

Como canta Caetano Veloso: “Cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é. Ninguém sabe a minha dor (e delícia?) de envelhecer em uma cultura em que impera a ditadura da juventude, da beleza e da magreza. Me deixem envelhecer em paz, do meu jeitinho: sendo simplesmente Mirian!

Ninguém sabe a dor e a delicia de envelhecer sendo Madonna. Madonna vai envelhecer do jeito que sempre viveu: sendo Madonnal

 

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