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O abandono de uma mãe

Havia meses que a velha não ouvia a própria voz. Morava só na casa decorada com suas lembranças. Foto: Getty Images

Márcia Lage
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A velha e a visitante sorveram devagar o vinho branco, na frescura perfumada do jardinzinho suburbano. Armaram a mesa do lado de fora, para contemplarem o pôr do sol enquanto punham a conversa em dia. À meia noite ainda tagarelavam.

Havia meses que a velha não ouvia a própria voz. Morava só, na casa decorada com suas lembranças, seus cacarecos empoeirados nas paredes, que imploravam por uma demão de tinta. O filho não achava necessário.

O filho não achava necessário muitas coisas das quais ela necessitava cada vez mais: serviços de jardineiro e de faxineira, pilates, fisioterapia. companhia. Havia mais de um ano que ela não saía de casa, a não ser para ir à missa.

Emagrecera uns dez quilos nesse período, mas o filho nem reparou. Telefona duas vezes ao dia para se certificar de que ela está bem. Visitas pessoais são raras.

Ele está preocupado é com a mulher e com a continuidade de sua família, que já vai para a terceira geração. Com muito conforto, graças à pensão da velha.

Ela viveu sob as garras de um militar grosseiro e, quando este morreu, o filho assumiu o papel de controlador de seu dinheiro e de sua vida.

Abandonou-a na casinha de subúrbio e foi morar em apartamento de luxo, num bairro de classe média alta, longe o bastante para não se verem amiúde.

Quando, no dia seguinte, a visitante levou a velha para almoçar fora, ela confidenciou que nunca era convidada para nada.

Nos aniversários e natais, filho, mulher e netos apareciam no dia seguinte, com um pedaço de bolo e as sobras da festa. Deixavam-na com os pratos para lavar e se despediam. Secamente

No inicio da viuvez, ela ainda tinha um cartão de banco. Aos poucos, o filho foi retirando toda a sua autonomia. Primeiro, dava dinheiro para as compras. Agora, faz as compras. Trocou o telefone fixo por um celular vagabundo, sem recurso para chamadas de video. Cancelou a assinatura da TV e fixou a programação aberta num canal católico, desaparecendo com o controle remoto.

Numa gaveta empoeirada, a visitante encontrou o controle e zapeou por inúmeros canais, sem problema.

Assistiram a programas culturais e telejornais, que ela não via há tempos. Nem sabia da guerra entre Israel e os palestinos.

“Por que ele me disse que não pegava outros canais?”, ela perguntou para a luz que vinha da tela, a menor tela plana da menor TV que o filho podia ter comprado para ela. Tudo era pobre na casa da viúva rica.

A decepção maior foi quando a visitante fez uma chamada de video para uma irmã da velha.

Foi como se ela recebesse uma segunda visita. Um recurso que a tornaria menos solitária se tivesse pelo menos um Smart Phone.

– Porque ele não me deu um celular desses? Pensa que sou incapaz de aprender? Se minha irmã aprendeu, claro que eu também aprendo. Ia ser tão bom! Ver as pessoas é outra coisa – ela repetia, alegre com o contato visual.

A visita reafirmou que ela aprenderia qualquer coisa. É lúcida, esperta, inteligente e saudável.

Só não soube se impor ao marido e ao filho. Saiu das garras de um, caiu nas garras do outro.

Tem medo de homem. Desse tipo de homem que subjuga a mulher até não restar dela nenhuma capacidade de ação. Tática de tortura psicológica.

A velha chorou muito quando a visita foi embora.

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