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‘O grande ensinamento dos pacientes é viver o hoje’

Dr. Fernando Bacal, cardiologista que comandou a cirurgia de transplante do coraçao do apresentador Faustão. Foto: Maria Isabel Oliveira

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Neste excelente depoimento, Dr. Fernando Cabal, cirurgião que comandou a equipe de médicos responsável pelo bem sucedido transplante de coração do apresentador Faustão, dá uma panorama geral de como anda essa questão dos transplantes no Brasil, onde o número de doadores, segundo ele, ainda é muito pequeno.

“Perdemos pessoas, que morreram esperando… Cerca de 30% dos pacientes não conseguem chegar ao transplante” – explica ele.

E manifesta uma esperança: “Uma vez teve uma novela da Globo (“De corpo e alma”, exibida entre 1992 e 1993), em que a atriz Cristiana Oliveira era uma personagem transplantada. Ela inclusive gravou aqui no hospital. Naquela época, houve um boom de doadores. Talvez agora, com o (caso do apresentador) Fausto (Silva, atendido por Bacal no Einstein, no último dia 27 de agosto), isso também possa aumentar o número de transplantes no país.”

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Todos os dias, o cardiologista Fernando Bacal vai ao InCor, em São Paulo, passa visita aos pacientes internados, dá aulas aos residentes, se envolve em pesquisa. Mas há dias em que, especialmente, essa rotina é quebrada. O dia em que conversou com o GLOBO foi um desses: um coração estava a caminho para transplante. A imprevisibilidade é parte do trabalho das 30 pessoas que compõem o Núcleo de Transplantes dirigido por ele no instituto.

— Se a oferta de doador entra no sistema às duas da manhã, é nessa hora que temos que decidir. A enfermeira captadora na escala recebe a notificação e aciona o clínico cirurgião de plantão para discutir o caso. Se aceitamos, já começamos a pensar na logística — conta.

Sem essa logística, muitos doadores acabariam descartados, diz Bacal. E essa não é uma corrida a perder em um país em que apenas 45% das famílias dão aceite para doação – e em que 30% dos pacientes não conseguem chegar ao transplante. Em três décadas nessa área, Bacal, que é também coordenador de Programa de Insuficiência Cardíaca e Transplante do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, já viveu todo tipo de história.

Confira o depoimento a seguir:

“Transplantes são imprevisíveis. Sabemos que vai acontecer poucas horas antes. Tem vezes que estou jantando, ou numa festa, mas de sobreaviso, e o telefone toca. Trabalhar nessa área é assim. É um privilégio que tenho há 30 anos. Poucas intervenções na medicina são tão impactantes na vida de um paciente como um transplante.

Existe um antes e um depois. Primeiro é um paciente com uma doença grave, incapacitante, que até para tomar banho é difícil, porque está sempre no hospital, com falta de ar, inchado. Depois, tem gente que até vira atleta. A gente vê que a pessoa sente a vida voltando. E isso cria uma relação muito forte entre paciente e equipe.

Uma vez recebemos um jovem de 16 anos, do interior de São Paulo, muito grave. Ele ficou na UTI com a mãe do lado dele o tempo todo esperando o transplante, em prioridade. Um dia, muito mal, ele perguntou: “Mãe, você me ama?”. Eu estava no quarto, foi uma cena muito forte. Ela respondeu: “Claro, meu filho, estamos juntos aqui nessa luta”. E ele: “Não, você não me ama. Porque, se você me amasse mesmo, me daria seu coração e esperaria o transplante com meu coração ruim no meu lugar”.

Ela desmontou. Na cabeça de um menino jovem, eles tinham o mesmo tipo sanguíneo, era uma mãe egoísta. Ele imaginou os dois no centro cirúrgico, ele recebendo o coração dela. Temos situações assim. Hoje ele é triatleta, empresário, pai. Chegou um coração para ele.

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Sou padrinho de casamento de vários pacientes, muitos têm filhos com meu nome. Vários vão para Jogos Olímpicos de pacientes transplantados. Mas perdemos pessoas, que morreram esperando. Isso também marca. Cerca de 30% dos pacientes não conseguem chegar ao transplante. Então, essas pessoas em fase terminal de uma doença cardíaca projetam em nós a esperança de viver. Mas não somos deuses, temos nossos limites. As cirurgias têm 90% de sucesso, mas isso quer dizer que outros 10% não têm.

Por outro lado, o paciente que tem insuficiência cardíaca avançada tem 70% de chance de estar morto em um ano. É pior do que muito tipo de câncer. A cirurgia oferece chance de qualidade de vida e sobrevida. Lidamos com a chamada oncologia da cardiologia, em que a única saída é o transplante.

Eu me envolvo. Acredito muito em Deus, tenho essa fé. Mas quando saio do hospital tento aproveitar meus momentos de lazer, com minha família. É preciso ter válvulas de escape. Gosto de filmes, de futebol. Sou santista fanático. Vejo sempre meus amigos. Faço atividade física. E tenho um lugar no litoral de São Paulo para onde vou quando posso para recarregar baterias.

Você imagina que um paciente na fila vai perguntar: “Quanto tempo eu vou viver com o coração novo?”. Mas tendo acompanhado mais de mil transplantes só ouvi essa pergunta duas vezes. As pessoas estão tão sofridas pela doença que só pensam no transplante e em viver o hoje. Esse é o grande ensinamento que elas me dão. De viver bem o hoje, de não perder tempo com coisas pequenas, de valorizar o tempo com a família, o estar em casa, ter trabalho. Ir a um cinema. São coisas simples. E essas que são as coisas boas da vida.

As famílias nem sempre entendem por que um transplante pode demorar. Falo sempre para o meu time: “Conversem”. É preciso passar as informações. Compartilhar angústias, limitações. Não somos infalíveis. Outra questão é quando chega um paciente para cuidados paliativos de fim de vida. É um paciente que estava na fila, por vezes novo, mas está com insuficiência renal, insuficiência hepática, uma infecção que não conseguimos controlar. E aí precisamos dizer para a família de um jovem de 20, 30 anos, que chegamos no nosso limite. É difícil.

Quando saí da residência, em 1992, havia muito menos recursos. Não era uma área que atraía tanta gente. Mas queria ficar no InCor. E nesses anos vivi todo o avanço do transplante e do tratamento da insuficiência cardíaca. Hoje é uma área pujante na cardiologia. E temos caminhado. Existem hoje melhores soluções de preservação para o órgão em transporte, a caminho do transplante. Houve mudanças na técnica cirúrgica das costuras do coração. Melhores exames de painel imunológico, que diminuem as chances de rejeição. Novos imunossupressores para pós-transplante. Uma revolução.

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Mas seguimos estacionados nos cerca de 45% de aceite de famílias para doação. Uma vez teve uma novela da Globo (“De corpo e alma”, exibida entre 1992 e 1993), em que a atriz Cristiana Oliveira era uma personagem transplantada. Ela inclusive gravou aqui no hospital. Naquela época, houve um boom de doadores. Talvez agora, com o (caso do apresentador) Fausto (Silva, atendido por Bacal no Einstein, no último dia 27 de agosto), isso também possa aumentar o número de transplantes no país.

Essencial dizer que não se compram órgãos. A fila é única. Ter dinheiro não faz ninguém passar na frente. As pessoas são submetidas a um cadastro nacional que responde a regras muito claras: igualdade de tipo sanguíneo, dados antropométricos, de compatibilidade imunológica, respeitando o tempo de fila no desempate, critérios de gravidade. É um processo transparente e auditado. Não existe furo. Existe a seriedade das pessoas que trabalham com transplante, 24/7, em busca de ajudar pacientes a voltarem a viver.

É importante o tributo às famílias que num momento de dor, numa morte inesperada, com pacientes frequentemente jovens, decidem ser doadoras. O transplante só acontece porque nesse desprendimento, em um ato de amor e cidadania, as famílias se decidem pelo “sim” à doação. E precisa haver anonimato. As histórias das famílias de doador e receptor se juntam no momento do transplante, mas devem se separar depois, para que uma família possa sedimentar seu luto e a outra possa voltar a viver.

Também precisamos que o sistema de captação seja mais profissional. Muitos doadores estão em hospitais periféricos, com pouca estrutura. Ter equipes de captação que possam ir até o local, cuidar do doador, fazer a logística, pode ajudar a que no futuro utilizemos mais corações do que hoje, em termos percentuais. Às vezes o doador está mal cuidado, com pressão baixa, precisando de muitos remédios, e isso inviabiliza o transplante, porque sabemos que o coração não vai funcionar bem.

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Se tivermos mais doadores e melhor sistema de captação, podemos triplicar o número de transplantes em cinco anos. Meu sonho é ver o Brasil e as instituições em que trabalho líderes do transplante mundial. Já somos reconhecidos internacionalmente, mas temos condições de ser o grande centro transplantador do mundo. Ainda não chegamos no teto.”

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