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‘Para falar com Deus, é preciso se aventurar’

Márcia Lage, jornalista e escritora, passou cinco dias mergulhada no seu próprio silêncio interior. Foto: Acervo de família

Márcia Lage

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Foi para espantar pensamentos apocalípticos e sentimentos tristes que subi a serra de Soledade de Minas e mergulhei no silêncio.por cinco dias. Sem celular, num alojamento dos mais simples,  comida vegana frugal, muito mantra e muito ásana.

Você há de pensar que minhas feridas eram mais profundas que as do próprio Cristo, para acordar às 5h, meditar em jejum até às 7h, depois me contorcer até 8h30m, e só depois tomar o chá da manhã. Cheguei a sentir cheiro de café num transe de abstinência.

Adorei a experiência. Não foi a primeira vez nem será a última que faço isso. Aliás, decidi que vou repetir o ritual anualmente, para alinhar os chacras, alongar a coluna e limpar a mente do lixo tóxico que nos assalta de manhã à noite.

Poderia ter feito isso sozinha. Era só me isolar em algum lugar sem internet,  transporte público e televisão. Mas não é a mesma coisa. Num.mosteiro (ou Ashram, como foi o meu caso), a rigorosa disciplina dos monges ajuda contra a dispersão da mente e dos sentidos.

O silêncio quebra na boca os comentários jocosos. reclamações desnecessárias, palavras vazias. Se pudéssemos falar, teríamos queixado dos mosquitos, do arroz branco, contado nossas vidas, comentado sobre os pássaros e morcegos ou cantado. Somos viciados nisso. Em ruídos externos,  que sufocam nossas angústias e impedem um tete-a-tete com nossa alma.

Éramos três no Ashram: uma carioca elétrica que não resistiu e se debandou no segundo dia; um sul-africano nômade, que quando pôde falar me mostrou o pé com 17 picadas de mosquitos, segundo a contagem dele. Tudo que ele queria era um café e uma taça de vinho.

Eu tambem. Não nos tornamos seres iluminados em cinco noites no mato. Apenas desligamos os excessos para termos contato com o que existe de bom em nós mesmos.

O mestre do Ahram, Siri Narayama, chama-nos de buscadores. Há os que buscam a Verdade e há os que buscam bem-estar, de acordo com ele. Estou entre os segundos. 

Não acredito numa Verdade porque as verdades são criadas para acomodar circunstâncias e manipular pessoas. Deus também muda, conforme os interesses do mercado, da política, das religiões. Seu nome é tão vilipendiado por falsos profetas que é melhor ganhar distância de quem diz: “Conheça a Verdade e a Verdade vos Libertará”. 

O que fiz foi absorver os sons do vento, da chuva, dos trovões e raios clareando a noite. Vi uma lua crescente e alvoradas vermelhissimas, adornadas por milhares de maritacas, falando sem parar. Feito gente.

Vi que posso acordar cedo, se quiser. Comer menos. Dormir mais. Não falar, não julgar, não me interessar pela vida alheia. Vi que posso sobreviver com o mínimo.  Respirar profundamente e ganhar mobilidade, por meio do Yoga.

Vi que estar só é bom. Muito melhor que mal acompanhado. E que. para falar com Deus, é preciso se aventurar, como Gilberto Gil já ensinou:

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