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Relógios de parede e o tempo perdido em desavenças

Cena do filme Tia Virgínia: a disputa por papéis azeda o vinho e queima a ceia, nos natais das irmãs ( Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso) que envelhecem junto com a mãe. Foto: Reprodução/Internet

Márcia Lage
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Na parede da sala da senhora de 87 anos, seis relógios de pêndulo badalam incessantemente. Cada um deles parou numa hora qualquer, o que para a velha pouco importa.

O que ela quer é ouvir o movimento dos pêndulos, que marcam a eternidade do seu isolamento. Um deles chega a tocar 200 vezes. Outro anuncia 10 horas quando são duas da madrugada. Um terceiro, antes de badalar o que lhe convém, executa a melodia católica de “A treze de maio na cova da Iria no céu aparece a Virgem Maria’.

A senhora não se organiza pelos relógios. Eles lhe trazem recordações de muitas épocas. São heranças do bisavô, do avô, da mãe, de uma tia, de um padre. Cada um deles tem uma história e essa história é rememorada quando eles emitem o som das horas incertas.

Relógios são heranças do bisavô, do avô, da mãe, de uma tia, de um padre. Foto: Márcia Lage

Ela se guia mesmo é pelo nascer do sol e pela algaravia dos pássaros em seu jardim. Também pelo miado gentil das duas gatas, que toda manhã verificam se ela está viva e lhe pedem mais vida. Porque ela fala com elas e elas a entendem, ao contrário dos filhos, de ideias muito diferentes das dela.

Enquanto os relógios tocam sincronizados pelos pêndulos, alheios às horas verdadeiras, ela cuida do jardim, da comida, da casa. Tudo a tempo e a hora. Sem companhia de gente, numa rotina de afazeres que seria silenciosa como um sepulcro, não fossem os relógios, os gatos, os passarinhos e as flores.

Os relógios da solitária, porém independente senhora, fazem lembrar a abertura do filme Tia Virginia, do diretor Fábio Meira. Uma história de familia – porque toda familia é igual – às vésperas do Natal.

A atriz Vera Holtz, numa interpretação que merece o Oscar, está de costas, de camisola e longos cabelos brancos, conferindo se o relógio de pêndulo da familia foi devidamente consertado. Pacientemente, ela roda os ponteiros e testa hora por hora. E a gente vai sendo sufocada por aquela belíssima representação do escoar do tempo.

Principalmente quando os créditos vão passando sobre o correr artificial das horas e vemos o nome da produtora: Janaina Diniz Guerra, a filhinha da atriz Leila Diniz, morta num acidente de avião em 14 de junho de 1972. Sua orfandade, aos sete meses de idade, comoveu o país.

Pois agora, a menina ja tem 52 anos, é atriz como a mãe e cineasta como o pai. O filme fala da passagem do tempo, do nosso papel de expectador na vida, da nossa total impotência diante do envelhecimento e da estupidez dos sentimentos de competição, despotismo. inveja, ciúme e agressividade nas famílias.

Janaína Diniz Guerra Foto: Reprodução/Internet

A disputa por papéis azeda o vinho e queima a ceia, nos natais das irmãs que envelhecem junto com a mãe. Bom de ver, como arte e como reflexão para as mudanças que se fazem urgentes no comportamento humano.

De nada adianta celebrar o nascimento de Cristo se nada do que ele ensinou é posto em prática. Que haja um pouco de amor e de tolerância neste Natal e no dia a dia das famílias.

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