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Sem amigos, a vida não vale um dente

Celebrei meu aniversário de 68 anos com um casal, uma irmã e três amigos tão intimos que não ficaria envergonhada de estar banguela diante deles. Foto: Reprodução/Internet

Márcia Lage

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– Daqui pra frente é só pra trás – ironizou meu amigo quando eu apareci na casa dele sem um canino. Ele estava cozinhando um bacalhau divino para o meu aniversário, que teria os convidados que eu quisesse. Chamei, além dele e da mulher, de quem fui madrinha de casamento, uma irmã e  três amigos, tão intimos que não ficaria envergonhada de estar banguela diante deles.

Centenas de histórias compartilhamos ao longo dessa convivência de quase 50 anos, que começou no trabalho e seguiu vida afora. Cada um com suas escolhas, morando em cidades diversas, casando, separando, tendo filhos, netos, perdendo pais, adoecendo de vez em quando. Mas sempre unidos. Sempre se reunindo para celebrar natais, réveillons, aniversários, novos casamentos, a vida, enfim, com toda sua carga de emoção e magia.

A perpetuação dessa amizade tão antiga se faz agora no convívio com a segunda geração. Sempre há um advogado, um médico, um dentista que se formou enquanto envelhecíamos,  que nos salva com as tecnologias de ponta com as quais nem sonhávamos, quando eles eram fofos bebês, começando a engatinhar.

A cirurgiã bucomaxilar que operou meu canino  perdido é filha de uma das minhas convidadas  para o jantar de aniversário. Por meio de uma técnica chamada  PRP – Plasma Rico em Plaquetas -, que usa o sangue do paciente para criar um osso novo na área detonada por um dente infeccionado, ela garante um implante onde antes não havia espaço para tal. Só que é preciso esperar.

Primeiro, sem dente. Depois, com um provisório. Até que o enxerto fique firme.

Passei banguela as três mais importantes festas para mim, que ocorrem de dezembro a fevereiro: o Natal, o Réveillon e o aniversário. Participei de todas elas com a confiança que amigos sinceros proporcionam à autoestima.  Trocamos experiências e afetos. Nos consolamos de nossas mazelas. Rimos da nossa decadência. Renovamos esperanças num futuro que os jovens já estão construindo, com as oportunidades que a nossa geração criou para eles.

A noite se encerrou com o parabéns para você, docinhos de amendoim e uma deliciosa torta de pistache, sobre a qual duas velas teimosas insistiam em reacender  toda vez que eu as soprava, não deixando sombra de dúvida sobre a minha nova idade: 68 anos.

Apesar do vaticínio do meu amigo-anfitrião de que “daqui pra frente é só pra trás”, fiquei feliz como uma criança que completa seis anos, exibindo minha falha dentária como algo provisório, confiante de que uma  terceira  dentição está por vir.

Por enquanto, com implante de titânio, garante a jovem cirurgiã que eu vi nascer. Mas, num futuro que ela talvez alcance,  com reconstituição não só de dentes, mas de todos os órgãos do corpo humano, por meio de células-tronco.

Que para trás que nada! Seremos velhinhos vintage. Totalmente recauchutados, por dentro e por fora. Se os amigos seguirem juntos, vai valer a pena continuar soprando velas. Sem eles, a vida não vale um dente.

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