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Vivemos em plena cultura do roubo

Só ao descer de um ônibus na rodoviária Novo Rio, a autora deu falta do celular. Foto: Reprodução/Internet

Márcia Lage
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Achado não é roubado, diz o dito popular brasileiro. Uma frase que ouvimos por gerações constrói a verdade e o hábito. É como a famigerada lei do Gérson: “Gosto de levar vantagem em tudo.Certo?” Ou “todo político é ladrão” e outras generalizações que dão fama negativa ao povo brasileiro e criam em nós eterna desconfiançab nos outros, má vontade das instituições em resolver pequenos delitos e ausência de mecanismos para que as pessoas possam exercer a prática de encontrar os donos das coisas perdidas.

Comigo aconteceu tudo isso e o oposto no dia de finados, quando dei falta do celular ao sair de um ônibus na rodoviária do Novo Rio. Primeiro foi o corpo mole da empresa para tentar me ajudar. O atendente do guichê dizia que eu tinha que telefonar para o Sac (Serviço de Atendimento ao Consumidor) e os passageiros da fila começaram a contar casos de inúmeros descasos do tal Sac da viação, que nunca soluciona qualquer problema.

Pois exigi que o atendente ligasse para a garagem, relatasse a minha queixa ao pessoal da limpeza e pedisse que olhassem com cuidado sob a poltrona 11. Meia hora depois veio a informação de que nada havia sido encontrado. Pedi que ligasse para o meu número e, com muita impaciência ele ligou. O telefone chamou. Ninguém atendeu.

Então, fui perguntar ao Serviço de Informações onde funcionava o Departamento de Achados e Perdidos da Rodoviária. Só em dias úteis, das 9 às cinco, disseram. É tão oculto e de tão dificil acesso para quem carrega malas que quase nunca recebe nada para ser entregue a ninguém.

Embarquei para meu próximo destino como se estivesse nua e perdida. Cheguei às seis da manhã. Fui logo para o computador tentar recuperar documentos, textos, fotos, contatos. Tudo estava salvo em três ou quatro nuvens, mas eu não me lembrava de nenhuma senha e fui sendo bloqueada pelas inúmeras tentativas de acertar.

Consegui entrar no WhatsApp e falar com as pessoas, mas não pude fazer um Boletim de Ocorrência online, porque o site da delegacia travava na hora do envio. E o site do tal Sac (Serviço de Atendimento ao Consumidor) da empresa estava fora do ar.

Como sofrer é coisa que me irrita, esperei dar 10h e fui a um shopping comprar outro aparelho, ansiosa para salvar meu número. Às duas da tarde completei a difícil operação. Fiz uma divida até o final de 2023 e retornei ao modo virtual, apanhando muito do novo
aparelho.

À noite, minha irmã recebeu uma mensagem, em mau português, ilustrada com um vídeo do meu telefone e a disposição de devolvê-lo. Pensamos logo em chantagem e pagamento para resgate do aparelho. Por segurança, não passei nenhum endereço para que o autor da mensagem fizesse a entrega.

Depois de muitas perguntas, o cara explicou que não pôde atender âs minhas chamadas, porque o telefone tem senha digital, mas que conseguiu ver o número da última chamada, justamente para minha irmã. Dai, entrou em contato.

Perguntei se ele poderia mandar o telefone por Sedex, prometendo uma pequena recompensa junto com o reembolso da postagem. Meia hora depois ele me mandou o comprovante dos correios. O aparelho deve chegar nesta segunda ou terça feira.

Eu me rôo em contradições: alegre por ter meu aparelho de volta e triste por ter feito um gasto desnecessário; feliz por constatar que ainda há gente honesta neste país e envergonhada por ter desacreditado nisso; incomodada por recompensar uma virtude e admirada do esforço de um cidadão para exercer essa virtude, meio desvalorizada na bolsa de valores humanos.

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