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Déa Januzzi, jornalista guerreira, que o tempo não apaga. Ela faria 70 anos neste 9 de julho

 

 

 

 

 

Déa Januzzi trabalhou durante 38 anos no jornal Estado de Minas e lançou o livro Coração de Mãe. Ela também foi colaboradora do site 50emais. Foto: Reprodução/Internet

 

Este texto foi escrito por Viviane Café,  grande amiga de Déa Januzzi, uma das jornalistas mais importantes da história do jornalismo mineiro, falecida em 4 de novembro de 2020, aos 68 anos. 

Viviane reside fora do Brasil, como ela própria diz, ” a 8 mil km de BH”. Foi lá que tomou conhecimento da morte de Déa. Abalada, sentou e escreveu sobre a trágica notícia.

Neste sábado, 9 de julho, quando a jornalista completaria 70 anos,  homenageamos – o 50emais e Viviane Café – a nossa extraordinária Déa Januzzi.  Esta nota de despedida foi escrita no dia em que ela partiu para a sua derradeira viagem.

Leia:

“Hoje recebi a triste notícia do falecimento da Jornalista Déa Januzzi. Moro a 8 mil km de BH, em uma província do Atlântico Norte, terra de pescadores de lagosta, e mesmo aqui, as palavras da Déa me alcançaram, como se quisesse se despedir, bater na porta, desejar um até logo. 

Conheci Déa em 2011 em uma reunião, na sede do Estado de Minas, na Avenida Getúlio Vargas.  Tive o prazer em atuar como colaboradora “fantasma” em alguns projetos da Déa, inclusive do aclamado texto “Envelhecemos”, premiado pela Bradesco Seguro em 2012.

Lembro da cena, eu sentada em minha cama lendo artigos em geriatria quando recebi o telefonema da Déa;  ela, afoita, falava da possibilidade em escrever um caderno sobre a velhice e precisava de um apoio de um especialista ,   parei e pensei, Déa, porque você não se imagina em 2050? e assim surgiu o texto, sim, não é  conversa de pescador,

São situações de bastidores que não são contadas. Trocamos e-mails (ainda os tenho) e com a ajuda de uma jornalista suporte,  o caderno  acabou sendo tecido, como um novelo de lã que envolveu várias cores e texturas, assim era Déa. 

Déa era a palavra, e a palavra era Déa. Para quem teve o prazer em conhecê-la, Déa era intensa, sem meias verdades, afiada. Andava com seus sapatos exóticos, casacos brocados e cigarro na mão. Amava falar sobre seu “padrinho” de Estado de Minas, Roberto Drummond, e de suas queridas Amigas-irmãs Maya Santana e Cristina Bahia. 

Uma taça de vinho era sempre bem-vinda, além de um bom café, claro. Lembro de Déa em minha sala de visita no Sion, divagando teorias e sonhos. Déa se reinventava a cada texto, se utilizada da anestesia da correnteza da vida para criar, sons, cheiros, caricaturas, sabor e palavras.  Assim era Déa, Déa era assim, caleidoscópio, indefinida, ilimitada, atleticana.

 Hoje chorei, um choro sozinho em um lugar distante.  Li e reli o texto “fagulhas do medo: Acredito que este foi um texto-despedida. Um registro da indignação pelo mundo moderno, pelo jornalismo que busca números e não qualidade. Déa era uma jornalista empoderada; jornalista que se esparramava e se distribuía nas linhas de seus textos. Déa deixou um pedaço de si em cada coluna do coração de mãe e em cada pedaço de papel que escreveu. 

Não  podemos deixar a anestesia do tempo apagar nossa Déa Januzzi, essa criatura oculta , que se enfiava nas entranhas das montanhas da Serra do Cipó e traçava  suas cicatrizes  em palavras. Nada mais justo um prêmio em seu nome. Prêmio Déa Januzzi, celebrando jornalistas guerreiras, que o tempo não apaga.”

Fagulhas do Medo

Déa Januzzi (escrita pouco mais de um mês antes da morte)

Estou em chamas, queimada por dentro e por fora. Ninguém consegue apagar esse incêndio que, em labaredas, devora tudo em mim. Não consigo ver solução. Não há mais chance. Vejo o padre Júlio Lancelotti ser crucificado por algozes da intolerância, do preconceito, da falta de compaixão para com o outro. Vejo padre Júlio Lancelotti ser ameaçado pelas chamas do ódio. Logo ele, que pratica o cristianismo real.

Não sai da minha cabeça uma das falas desse ser que prega no deserto, apesar da coroa de espinhos que enterraram na cabeça dele.  Fico repetindo a fala do padre Lancelotti como um mantra, uma oração de amor, capaz de apagar a mesquinhez e a mediocridade desse momento atual: “Procuro Jesus no Sacrário, mas Ele teima em morar debaixo do viaduto”. Perdoai-os padre Lancelotti, pois eles não sabem o que fazem!

Como diz uma letra de Bob Dylan: “Aqui tudo bem, só que eu estou sangrando, com a lança que acertou em cheio os meus princípios, a minha humanidade. Chamuscaram o meu coração. Não há um pingo de decência. Nem o coronavírus mortal pode conter o imoral que há na mente de pessoas tão perversas.

Meu aquecimento é pessoal – nem toda água do mar ou de uma tempestade de 40 dias seguidos pode apagar a insensatez. Nem a Arca de Noé que propus em uma das crônicas pode salvar o ser humano de tanto descalabro. Ou pode conter o abuso e o autoritarismo de um poder macabro, que se molda em fake news e algoritmos, que transforma os seres em robôs, em inteligência artificial, em mentiras deslavadas de que a terra é plana, de que os índios são os responsáveis pelos incêndios nas florestas.

Como se não bastasse, assisti ao documentário “Dilema das redes”, que fala de uma geração que não vive mais sem as mídias digitais. Foi um soco no estômago. É melhor alguém que domina a tecnologia do que outro que tem talento e experiência para escrever. Talvez, o meu choro convulsivo consiga apagar o fogo de um mundo que não entendo mais, que não quero fazer parte. Um mudo seco, árido, inóspito, criminoso, comandado por algoritmos.

Uma geração que vive de chupetas digitais, sem nenhum conteúdo, sem valores humanos, que acha que é melhor do que os outros, que não respeita o envelhecer nem tem tempo e paciência para uma conversa longa, olho no olho. Como disse Chamath Palihapitiya, um ex-executivo do facebook, “as redes sociais estão dilacerando a sociedade”. Ele lamentou ter participado da criação de ferramentas que destroem o tecido social. Proibiu os próprios filhos de se viciarem nesse produto. Usuários de redes sociais, segundo ele, são tão dependentes quanto os de drogas pesadas.

Como se não bastasse o fogo que se alastra pelas chamas do ódio, pelo extermínio da cultura, dos nossos ancestrais, da sabedoria de nossas avós, dos índios, é preciso engolir sem mastigar, a dependência cibernética, os burocratas da vida.  Preciso pedir desculpa às onças-pintadas de patas queimadas, aos micos leões dourados, aos elefantes, aos pássaros. A continuar desse jeito só vai restar a fuligem da existência na Terra.

Escrevo com fúria, em nome da natureza devastadora do ser, da falta de compostura e de seriedade coma vida. Há um complô contra os pobres, os feios, os humilhados e

ofendidos, os diferentes, os negros e os velhos. Não há sinal de vida, tudo repete a mesma ladainha, o mesmo refrão da competição, da aparência. Do supérfluo. É melhor fazer festa, abrir bares, amontoar, beber e comer até vomitar, do que prestar atenção no essencial, na simplicidade que faz vida florescer

É preciso consumir, assassinar as florestas, os animais, os pássaros que fogem do fogo em bando, que pedem socorro. Não há chance de escapar desse incêndio, das notícias vazias, digitadas sem nenhuma emoção, que só contribuem para a aridez de nossas vidas.

Desculpe-me geração cabeça baixa, que só olha para o celular, mas prefiro continuar vasculhando o céu. Prefiro desligar o celular como prova de amor. Nem a chegada da primavera conseguiu arrancar os galhos secos do meu coração. Estou ardendo!

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