*Maria Cristina Bahia
Nada é para sempre, filme dirigido por Robert Redford em 1992, conta a história de dois irmãos, filhos de um pastor, em algum lugar de Montana, nos EUA. Pela juventude deles, passavam um rio e muitas diferenças: o mais velho, tímido e comportado; o mais novo, sedento de vida e emoções. Eles seguiram, claro, rumos diferentes. O mais velho vai para a faculdade, casa-se e prepara-se para ser professor. O mais novo fica em Montana, trabalha como jornalista e mergulha em águas profundas da vida. Morre de forma trágica e precoce. No velório, o pai confessa: “Há pessoas que não conseguimos entender, mas conseguimos amá-las” (não exatamente com estas palavras, não importa, o significado que ficou para mim é este).
O claro rio de Montana atravessa o meu coração ao recordar a amizade improvável que Déa e eu construímos. Com um desconforto agudo, me vejo no lugar do primogênito no filme. A Déa está no lugar do caçula: inquieta, destemida, dona de uma “rebeldia incurável”, como ela mesma se definiu várias vezes. As diferenças nos aproximaram – víamos, uma na outra, atitudes e ideias que reverenciávamos (no meu caso, confesso, com uma dose de inveja). Pessoas como a Déa não passam pelo campo da razão. Elas são simplesmente amadas.
Passamos os primeiros anos da década de 70 na faculdade e daí fomos juntas para fazer estágio no jornal Estado de Minas. Éramos jovens, como já não consigo mais me lembrar. Nos entregamos inteiramente ao trabalho de fazer entrevistas, levantar dados e redigir textos que eram impressos e lidos. Trocávamos palavras escorregadias e leads delirantes. Mais que tudo, marcávamos ponto na paixão pela escrita. Paixão mais contida, em mim; e transbordante na Déa, como um rio eternamente no tempo da cheia.
Também nos aproximava uma mesa de bar, sempre em companhia dos jornalistas amigos, alguns deles ídolos que marcaram para sempre as nossas vidas. Voltávamos para casa de madrugada, num tempo em que era possível andar a pé pelas ruas. O trabalho era muito, o dinheiro pouco, mas éramos jovens e o futuro não importa, vivamos o presente.
Houve um momento em que nos separamos. Eu me fui, Déa permaneceu no jornal, ao qual dedicou os melhores anos da vida e textos belíssimos, capazes de espetar o coração de muitos leitores fiéis. Parecia mágica: as palavras no lugar certo, o ritmo como o de cachoeiras, o tom envolvente de quem encontrou asas no estilo do então chamado novo jornalismo. E as verdades da Déa ali, inteiras. Ela se revelava também nos textos, sem medo, sem inibições.
Houve também muitos momentos em que nos reencontramos. Com filhos e casa pra cuidar. E, mais tardiamente, com vinho (ela) e uísque (eu), bebidas que passamos a apreciar na maturidade e nos acompanharam na chegada da velhice. Continuávamos a rabiscar projetos mirabolantes e a trocar textos que escrevíamos para não morrer. Porque o cigarro já nos sufocava no passeio do Dona Derna, onde nos encontramos algumas vezes no ano passado, entre risadas e lembranças de quando éramos jovens, muito jovens.
Ela batalhava pela vida e suas exigências cotidianas; eu, pela alma. Déa prosseguia como uma artesã do texto, a mesma paixão pelas palavras e suas revelações, suas verdades e aspirações. Uma bordadeira ágil e precisa no trato das questões humanas. A pandemia interrompeu nossos encontros casuais e plenos do mais puro amor.
Adquiri nos anos mais recentes uma dificuldade crônica de chorar a morte de quem viveu longa ou – o que considero melhor – intensamente. Sinto o golpe da ausência abrupta que a morte impõe. No caso da Déa, esta ausência é avassaladora, um punhal atravessado na garganta. É um longo e emocionante pedaço da vida que se vai. Mas não adianta, não consigo mesmo chorar. Leio os textos dela que guardei neste computador. Leio e releio e leio mais. Encontro, neles, o pai do filme no velório do filho caçula. Existem pessoas que só podemos amar.
*Maria Cristina Bahia, jornalista, foi uma da amigas mais próximas de Déa Januzzi, com quem trabalhou, no início da carreira, no jornal Estado de Minas.
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