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Direito de morrer com dignidade

Assim como Godard, Alain Delon, 86, anunciou que deverá fazer opção pela morte assistida ou suicídio assistido. Foto: Reprodução/Internet

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Muito bom este artigo de Ruth de Aquino inspirado no fato de o gênio do cinema Jean Luc Godard, 91, ter posto fim à própria vida através de um recurso que é legal na Suiça: a morte assistida. Foi lá que o diretor francês se despediu do mundo, na tarde da última terça-feira(13), numa clínica especializada.

Outro francês contemporãneo de Godard, o ator Alain Delon, 86, anunciou em abril que, quando achar que chegou a hora, vai pedir ao filho para levá-lo a uma clínica suiça, onde prentende se entregar à morte assistida.

Ruth Aquino lembra que o que é permitido no Brasil é a ortotanásia – sedação do paciente. E conta: “Assim se foram meus pais com mais de 90 anos. Nós, as filhas, não queríamos interná-los em hospitais quando não houvesse mais saída.”

Ruth também fala da dificuldade de todos nós em lidar com a morte. Mas lembra que, “às vezes é mais difícil e sofrido encarar a vida. Ou a dor incurável de quem amamos muito, se essa pessoa quiser dizer adeus.”

Leia:

Godard não queria virar um vegetal empurrado num carrinho de mão. A imagem é cruel, mas está longe de ser ficção. Quando vejo alguém decidindo morrer dignamente, penso em nossos pais idosos ou nos limites de nossa própria velhice. São duas situações de impotência. Reais. Lembro uma crônica minha sobre os gritos que ouvi no play de meu prédio.

“Engole…engole! É só água. Tua boca tá cheia d’água. Engole. Então cospe. Aqui, cospe. Cospe!” Era uma cuidadora uniformizada. Quem era a mulher na cadeira de rodas? Ela cresceu, estudou, amou, trabalhou, teve filhos, viajou, discutiu, chorou, riu. E agora, sem conseguir mais deglutir, estava à mercê de alguém sem preparo e sem sensibilidade. A filha, fora de casa, no trabalho, achava que a mãe era bem cuidada. Pagava por isso. Privilégio de uma minoria.

Pensei se eu gostaria de estar viva nas condições dessa senhora. Não gostaria. Por autoestima, por amor próprio, para não dar trabalho aos outros. E por falta de prazer. Godard, o cineasta do genial ‘Acossado’, estava lúcido aos 91 anos, mas com “múltiplas patologias incapacitantes” que o deixavam exausto. Em vez de se matar com requintes de drama, recorreu à lei para “ir embora tranquilamente”, na Suíça, onde o suicídio assistido é permitido. O mesmo desejo já foi expresso por Alain Delon.

O desejo de morrer com dignidade e não prolongar a vida artificialmente é cada vez mais aceito no Brasil. Aqui é ilegal a eutanásia – quando um médico abrevia uma vida de dor e sofrimento. Também é considerado crime o suicídio assistido ou morte assistida – quando o paciente, por opção pessoal e sob supervisão médica, toma um remédio que faz seu coração parar de bater. Dorme e não acorda mais.

O que é legal no Brasil? Já podemos fazer o testamento vital ou as Diretivas Antecipadas de Vontade. Um documento que se baixa na internet, registrado ou não em cartório. A pessoa declara que, em caso de perda de lucidez ou doença terminal, não quer ser mantida em ventilação mecânica ou hemodiálise ou qualquer prolongamento de uma vida sem recuperação. Deixa-se a cópia com um parente ou um amigo e com um médico.

Também é legal a ortotanásia, que significa sedar pacientes idosos em sofrimento. São os chamados cuidados paliativos, sem tratamentos invasivos, até ocorrer a morte natural. Assim se foram meus pais com mais de 90 anos. Nós, as filhas, não queríamos interná-los em hospitais quando não houvesse mais saída. Minha mãe não podia mais decidir por ela. Meu pai era muito lúcido, adorava viver, mas não suportou as limitações e dores de um câncer súbito e terminal e queria distância de hospital. Não se podia contrariar meu pai.

“Tenho muitos documentos deixados por pacientes meus”, afirma a Dra Margareth Dalcolmo. “Nem sempre a família inteira compreende, mas o desejo do paciente precisa ser respeitado. O direito de ter uma morte digna e humana precisa ser debatido e disseminado. O Brasil será a partir de 2040, ou seja, amanhã, um país de idosos, está envelhecendo muito rapidamente. Sou francamente favorável à morte assistida e acompanhei uma amiga numa despedida em Zurique, na Suíça”. (Na América Latina, essa opção, também chamada suicídio assistido, só é legal na Colômbia).

Recomendo um filme francês, de François Ozon, chamado ‘Tout s’est bien passé’. Um homem mais velho, inteligente e ativo, sofre um derrame que paralisa parte do rosto e do corpo e pede a sua filha favorita (Sophie Marceau): “Me ajude a acabar com isso”. Ela desaba no início, mas acaba convencida pelo pai. A história tem beleza e humor. Como na França é ilegal, ele vai para a Suíça num carro e ali toma o remédio para dormir para sempre. “Preferiria champagne” são suas últimas palavras.

Ninguém está falando aqui que todo paciente terminal deve morrer. Mas deve existir possibilidade de escolha quando a vida passa a ser um imenso e doloroso sacrifício nos detalhes mais prosaicos do cotidiano. Essa discussão – como muitas outras – bate na questão moral e religiosa. A quem pertence nosso corpo? Há quem responda Deus ou o Estado, ou mesmo a Família. Não é meu caso. É sim complexo e difícil encarar a morte. Mas às vezes é mais difícil e sofrido encarar a vida. Ou a dor incurável de quem amamos muito, se essa pessoa quiser dizer adeus.

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