Maya Santana, 50emais
No domingo, Dia dos Pais, decidi postar esta crônica do psicanalista, educador, teólogo e escritor, Rubem Alves, sobre a tortura que os filhos podem submeter os pais, quando acham que eles envelheceram e já não são donos de sua própria vida. Isso acontece e com mais frequência do que imaginamos. Conheci uma jovem senhora que, embora amasse os pais, somente deixava que comessem ou fizessem o que ela determinava. Toda vez que os três nos visitavam, eu ficava o dia inteiro angustiada, imaginando a agonia daqueles dois velhos, cuja filha se transformara numa espécie de carcereira deles. Publico o texto de Rubem Alves como alerta: muitas vezes acreditamos que estamos “cuidando” dos nossos pais, mas estamos simplesmente submetendo-os às nossas vontades, como mostra o autor nesta crônica, que tem como título original “Carta aos filhos de pais velhos.”
Leia:
Tenho relações muito boas com os meus filhos. Somos amigos. Não me intrometo na vida deles e eles não se intrometem na minha. Conversamos sobre os problemas comuns, mas ninguém se atreve a dar conselhos. Porque ninguém gosta de ouvir conselhos. Quem dá conselhos está silenciosamente dizendo: “Sei mais sobre a sua vida que você. Se eu fosse você eu etc., etc…”
Mas o fato é que os filhos, freqüentemente, acham que os velhos perderam o juízo e que fariam melhor se obedecessem aos seus sábios e desinteressados conselhos. “Papai, é para o seu bem…” Os filhos sabem o que é bom para os seus pais.
Pois o que digo aos filhos, não como conselho, mas como grito, é o seguinte: “Parem de ser chatos. Deixem seus pais em paz. Estão no fim da vida. Eles têm o direito de fazer o que desejam, ainda que seja errado. Um desejo errado é melhor que um não-desejo certo”
Ah! Como os seus pais os amariam se vocês os ouvissem com respeito. Porque é isso que mais se deseja. Quando se ouve com respeito acontece a amizade. E não existe nada de mais precioso que vocês possam dar ao seus pais que a amizade. Quando os filhos se põem a dar conselhos sábios aos seus pais o que se produz é um abismo entre ambos.
Chata é uma pessoa que está convencida da verdade das suas opiniões e se põe a atormentar os outros com as ditas opiniões. Por isso não lhe passa pela cabeça que seria interessante ouvir o que o outro tem a dizer. Na verdade ele não imagina que o outro tenha alguma coisa para dizer que valha a pena ser ouvida. Uma vez, numa festinha, fui capturado por um chato. Ele falava sem parar a dois palmos do meu nariz, cuspindo, e me cutucando a barriga para que eu prestasse atenção. Eu fui me afastando para evitar os cutucões e os perdigotos até que me vi contra a parede sem ter para onde fugir. De repente me veio uma idéia que me produziu pânico: “A festa vai acabar e eu ficarei livre dele. Mas a mulher dele vai dormir na mesma cama que ele…” O pânico que tive foi por causa dela. Hoje de manhã me dei conta de que os chatos podem ser os filhos. Nesse caso, ao invés de um, são muitos: nuvens de pernilongos a cantar o mesmo canto e a nos ferroar, impedindo o sono.
Os gerontologistas se preocupam com a saúde física e mental dos velhos. Pois me veio à cabeça que aos seus programas de re-educação dos velhos deveria acrescentar-se um programa de re-educação dos filhos dos velhos. À longa lista de doenças que afligem os velhos, reumatismo, surdez, osteoporose, catarata, dor no corpo, barbela de nelore ( nelore é uma raça bovina que se caracteriza por longas papadas pendentes balouçantes ), urina presa, dentadura ( pois dentadura não é uma doença?), deveria ser acrescentada mais uma doença de cura difícil: os filhos chatos que querem mandar nos seus pais.
Sugiro que os velhos leiam o livro da Simone de Beauvoir A Velhice. É um murro na cara. Filhos de pais velhos: divirtam-se no próximo fim de semana! Vejam o filme “A Balada de Naraiama”. É uma tendência que se encontra em muitas culturas: chegada uma idade aquilo que os filhos mais desejam é a morte dos pais. Porque os pais velhos deixaram de ser uma presença alegre. E útil. Principalmente útil. Passam a ser uma presença incomoda. O poema da pedra, do Drummond, serve para uma infinidade de situações. Uma delas é a seguinte: “Tinha um velho no meio do caminho, no meio do caminho tinha um velho…” O que me faz lembrar aquela piadinha… O neto, dirigindo-se ao vovozinho querido: “ Vovô, quando é que você vai virar sapateiro?” Responde o vovô espantado: “Virar sapateiro? Por que?” Explica o netinho: “É que eu ouvi o papai conversando com a mamãe e ele disse que quando você bater as botas nós vamos fazer uma viagem à Disneilândia…” O filme “A Balada de Naraiama” tem como cenário altas montanhas nevadas. Se fosse filmado num cenário moderno ao invés das montanhas teríamos as instituições onde os velhos são colocados à espera da morte.
Há uma estética da velhice. Quem desenha a estética da velhice são os jovens. Ah! Que linda é a vovó que fica com os netos para que os filhos possam viajar ou ir ao cinema! Vovó que faz bolinho de chuva, que faz manta de tricô para os netos, vovô que conta estórias para os netinhos dormir… Há o dia das mães. Há o dia dos pais. Seria justo que houvesse um dia dedicado aos avós! Que presente dar à vovozinha? Um par de chinelos! Que presente dar ao vovozinho? Um gorro de lã para proteger as orelhas do frio!
Mas a beleza dos velhos acaba quando eles se recusam a ser úteis aos desejos dos filhos. Principalmente quando eles começam a ter idéias amorosas. Velho que ama é velho tarado. Faz muito escrevi uma crônica sobre dois velhinhos que haviam sido namorados quando adolescentes, separaram-se, nunca mais se viram, re-encontraram-se muitos anos depois, ele com 79 anos, ela com 76. Apaixonaram-se, resolveram casar-se. Os filhos protestaram. Velho deve se preparar para morrer e não se meter em ridículas aventuras amorosas! Já pensaram em noite de núpcias de velho? É de rachar de dar risada! Ele morreu aos 81. Ela me telefonou, interurbano, e depois de uma conversa de 40 minutos, me confessou: “Pois é professor, nessa idade a gente não mexe muito com as coisas do sexo. Nós vivíamos de ternura!”
O que mais assusta os filhos quando os velhos se metem a arranjar namoradas é o destino da herança. Lembro-me de um respeitável senhor, professor, que viveu uma longa vida conjugal. ( “Conjugal”, do Latim, “con” + “jugus”, canga: aqueles que andam ligados por uma mesma canga). Ficou viúvo. A ausência da canga o tornou eufórico. Começou a arranjar namoradas. Os filhos ficaram muito bravos. Acharam que o velho estava fazendo papel ridículo. E o pior: gastando seu dinheiro com mulher a toa. Convocaram uma reunião de família para re-colocar o velho nos trilhos da elegância socialmente aceita. Assentados à volta a mesa os filhos despejaram suas reprimendas contra o velho que tudo ouviu mansamente, sem uma única queixa. Terminada a rodada, dada a palavra ao velho, ele disse só uma frase: “Tenho minhas necessidades afetivas…” E com esse argumento final, que não comporta contestação, levantou-se e deixou os filhos falando sozinhos…
Essas idéias me vieram à cabeça porque hoje pela manhã recebi um telefonema de uma pessoa muito querida, velho, com uma queixa dolorida: a sua solidão, ele já não mais é ouvido, não é respeitado, são os filhos que sabem a sua verdade e querem obrigá-lo a fazer o que ele não quer fazer e a não fazer o que ele quer fazer. E não pensem que são coisas absurdas o que ele quer fazer. São coisas que eu mesmo quereria fazer, se estivesse no lugar dele. Pequenos vôos de generosidade…
Diante disto só me resta um grito de guerra: “VELHOS DE TODO O MUNDO! UNI-VOS!”
Lindo texto!! Parabéns!! Nunca li tanta verdade junta!!