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Você já ouviu Cesária Évora(1941-2011). Não? Então, ouça. Se já ouviu, mesmo assim continue lendo, porque essa é uma excelente reportagem sobre a cantora nascida em Cabo Verde, que saiu da pobreza, conheceu o sucesso depois dos 40 anos e tornou-se “uma das principais cantoras do planeta.” Cesária Évora faria 81 anos em agosto próximo e está na mídia por causa de um documentário sobre ela, lançado em um festival nos Estados Unidos. Ela esteve no Brasil e se apresentou com Caetano Veloso, Marisa Monte e outros. Chamada de “diva descalça”, por se apresentar sempre sem sapato, ela explicou numa entrevista: “Eu andei tantos anos descalça, como a maioria de nós na Ilha (Cabo Verde), que é mais fácil para mim cantar descalça.” Para homenagear a espetacular cantora, os caboverdianos deram a um dos aeroportos do país o nome de Cesária Évora e lá instalaram uma estátua de três metros da artista.
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Mulher, preta, pobre, não exatamente jovem, tampouco considerada bonita, nascida na segunda ilha mais populosa de um país insular com menos habitantes do que Osasco. Para dificultar ainda mais, ela queria exercer seu direito de liberdade, de fazer suas próprias escolhas, de poder ser quem quisesse. Era o oposto do perfil que a indústria musical buscava num artista.
Mas, então, Cesária Évora cantou.
O efeito da música da artista cabo-verdiana poderá ser mais bem conhecido a partir de sábado, dia da estreia do documentário “Cesária Évora”, da diretora e o jornalista portuguesa Ana Sofia Fonseca. A exibição acontece exclusivamente no South by Southwest (SXSW), festival americano conhecido por seu espírito inovador, realizado em Austin, Texas, entre 11 e 20 de março. Apoiado por um trabalho de pesquisa bastante minucioso e imagens inéditas de arquivo, o filme mostra como aquela mulher superou a vida humilde na cidade de Mindelo até se tornar uma das principais cantoras do planeta.
Desde adolescente cantava em bares popularizando a morna, o gênero musical mais tradicional de Cabo Verde, mas só ganha reconhecimento internacional a partir de 1988, aos 47 anos, quando grava o álbum “Diva dos pés descalços”. Dali em diante, foi indicada seis vezes e venceu um Grammy. Foi homenageada em diversos países, como na França com o título da Ordem da Legião de Honra, e no Brasil com a medalha da Ordem do Mérito Cultural. Cantou nas principais casas de espetáculo da Europa e dos Estados Unidos, e vendeu milhões de discos. O culto em torno dela segue forte uma década após sua morte, em dezembro de 2011.
— Ela tinha todos os preconceitos que cabiam, mas ainda assim conseguiu conquistar o mundo. E fez isso como um espírito livre. Cesária tinha devoção à liberdade — explicou Ana Sofia Fonseca, em entrevista ao GLOBO por videoconferência, falando de Lisboa. — Com sua música, ela conseguia aproximar pessoas, aproximar mundos.
Ana Sofia começou a rodar seu documentário em 2018, no carnaval do Mindelo, uma tradição cabo-verdiana tão importante quanto o carnaval carioca, quando uma escola de samba fez um desfile em homenagem à cantora. A partir dali, diz, começou a montagem do seu “quebra-cabeça” de imagens. A maior parte do filme é de cenas de antigas gravações de colaboradores de Cesária, um material que exigiu meses de perseverança e paciência da diretora.
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— Eu passei um ano sem conseguir nada de diferente. Muita gente me dizia que não havia nada inédito. Em Cabo Verde, as pessoas não tinham acesso a câmeras — conta Ana Sofia. — Depois de algum tempo, encontrei sacos de gravações em Mini-DV (um formato de vídeo popular antes da era dos smartphones) com um músico que tocou com ela e com o José da Silva (empresário). A gente também encontrou vídeos com um militar português que tinha filmado a viagem a Cabo Verde. Chegamos nele a partir de uma foto ao lado da Cesária.
As imagens do passado incluem o encontro de Cesária com o cubano Compay Segundo, num estúdio de Havana, para um dueto. A cena mostra o estranhamento entre a dupla e a dificuldade para encontrarem o tom correto em “Lágrimas negras”. No fim, os dois aparecem abraçados no sofá, e Cesária pergunta se eles podem sair para um encontro “mais tarde, mais tarde”.
Em Nova York, ela aparece como convidada do programa de David Letterman. Em Los Angeles, na véspera de uma apresentação lotada no Hollywood Bowl, a cantora manda levarem uma panela de cachupa (prato típico de seu país) e diz: “Não tem um cabeleireiro cabo-verdiano aqui? Os americanos não vão entender meu cabelo”.
Para os brasileiros, chamam atenção sequências de arquivo em que ela aparece num bar cantando “Se acaso você chegasse” e se compara com Ângela Maria; em que grava “É doce morrer do mar” ao lado de Marisa Monte; e em que viaja em turnês pelos EUA com shows de abertura a cargo de Seu Jorge. O cantor e ator brasileiro é um dos entrevistados do documentário e define bem o talento de Cesária: “Era uma cantora que não jogava o texto fora. Sua maneira de interpretar fazia com que a gente compreendesse o peso de cada palavra, o peso de cada história”.
— A influência do Brasil é enorme em Cabo Verde. E ela adorava Ângela Maria — afirma Ana Sofia, que é casada com um jornalista cabo-verdiano e tem casa na península. — E a relação dela com o Brasil acabou indo além. Uma filha da Cesária estudou Nutrição no Brasil, e dois netos nasceram aí.
https://youtu.be/8xrHl8A7qkA
Um aspecto essencial da história de Cesária é a influência do tempo em que Cabo Verde se manteve como colônia do Império Português, até a independência de 1975. Parte do público da cantora era composta de militares portugueses que tinham na península um entreposto antes de chegar às outras colônias africanas, inclusive para reprimir insurreições. Um dos filhos conta: “Minha mãe nunca me falou do meu pai, só dizia que era português”.
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