Ingo Ostrovsky
50emais
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O apartamento onde moro aqui no Rio de Janeiro tem armários embutidos.
Embutido, diz o dicionário, é um “armário construído ou inserido num vão de parede”(Aurélio). Quer dizer, ele fica “dentro” da parede, não ocupa um pedação do quarto, como os armários embutidos que aparecem nos atuais folhetos imobiliários. Esses, para mim, são “desbutidos”, palavra que não achei no dicionário, mas que para mim representa o que o armário não é: embutido na parede.
Fico impressionado com esse uso, digamos, inadequado de certas palavras. O armário embutido é um bom exemplo (de embutido ele não tem nada!). Há outros. Quando eu era mais jovem, o pintor de paredes costumava passar a tinta duas vezes antes de considerar o trabalho feito. Havia sempre a ressalva de que haveria uma segunda mão. Hoje temos uma segunda “demão” de tinta. A segunda mão virou “demão”, vai entender!
Tem um uso inadequado de palavras que eu leio muito em comentaristas de futebol. Seguimento no lugar de segmento. “Tem um seguimento da torcida que não aceita o Tite”. Pode isso? Ou “a jogada do Neymar teve segmento”. Para escrever sobre futebol tem que gostar da língua portuguesa também, né mesmo?
Não sei o que acontece com o senhor ou com a senhora. Eu, me incomodo muito com isso!
Esses pensamentos me vieram à mente enquanto lia Torto Arado, best-seller do escritor baiano Itamar Vieira Junior, recomendado por 10 entre 10 críticos literários. Nota máxima para a obra, uma descrição crua e detalhada da vida das famílias descendentes dos escravos no Brasil dos latifúndios, depois da Abolição. Ou seja, até nossos dias.
Itamar escreve bem e enreda suas histórias com engenhosidade, costurando fatos e afetos de maneira original e surpreendente. É imenso o vocabulário que o escritor baiano usa. Repleto de palavras desconhecidas pelos meus ouvidos. Selecionei algumas, que tive que procurar nos dicionários.
As narradoras da história contam que na casa delas havia muitas noites de jarê comandadas pelo chefe da família. O Aurélio explica que jarê é uma “dança fetichista negra da Bahia”, o que explica a liderança que o pai delas exercia na comunidade.
As famílias só podiam construir moradias de barro, o uso de alvenaria era proibido pelos donos das terras e seus capatazes, para evitar casas permanentes. Ao lado das casas estavam os marimbús… Você sabe o que é? É a terra embrejada ao lado dos rios, aquele pedaço de chão que não é rio nem terra firme, um brejo. No livro, era onde as famílias podiam plantar alguma comida que, com sorte, seria colhida e, com mais sorte ainda, não seria confiscada.
Quando conseguiam ir ao mercado numa das vilas das proximidades, os personagens caminhavam longas horas carregando frutas ou farinha nos bocapios, palavra que não encontrei nem no Aurélio nem no Houaiss. Pela internet, o Dicionário Online de Português me informa que a palavra correta é bocapiú que, em Alagoas, é uma “cesta de palha de ouricuri, usada para carregar compras nas feiras”. Faz sentido!
Há muitas outras palavras em Torto Arado que para mim eram desconhecidas. Quase no final do livro surgiu “fojo”. Levei um bom tempo até entender que na trama se tratava de uma armadilha para pegar a onça. O Aurélio me confirma: “cova funda, cuja abertura se tapa ou se disfarça com ramos afim de que nela caiam animais ferozes”.
Torto Arado, entretanto, é mais do que isso e mexe com uma palavra velha conhecida nossa: submissão. Vale a pena ir ao dicionário Houaiss para uma definição adequada: “condição em que se é obrigado a obedecer; humildade afetada; subserviência; servilismo”.
Fim!
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