A história de minha família materna, os Aquino de São João da Barra, é povoada de lendas. Neste Dia das Mães, penso mais que nunca em minha avó, que não conheci. Maria Julia morreu bem antes de eu nascer. Tinha 51 anos e 23 filhos. Vinte e três gestações, vinte e três partos. Cinco filhos morreram bebês ou crianças. Penso em Maria Julia porque voltei nesta semana à Atafona das férias infantis e juvenis de verão, depois de cinco décadas distante. Foi o início de um resgate.
Maria Julia é uma personagem de romance. Casou aos 15 anos com Joaquim Thomaz de Aquino Filho. Brigou com a família, rica, para morar com meu avô, sinaleiro de trem. Começou a ter um filho todo ano. Não era apenas mãe. Ajudava o marido no Café Central, em São João da Barra. Nesse primeiro negócio do casal, ela tocava a moenda do caldo de cana. Fazia pastel. Goiabada cascão. Minha mãe, Dinah, 17ª na prole, só se lembrava dela grávida.
Conta a história que Maria Julia cuidou de um gringo enfermo, talvez norueguês, que aportou naquelas terras num navio. Em sinal de gratidão pela cura, esse estrangeiro teria deixado com ela a fórmula secreta de uma bebida. Nas panelas de sua cozinha, misturou os primeiros ingredientes do “Cognac de Alcatrão da Noruega”, que ficou conhecido como “o conhaque do milagre”. Era o começo da indústria de bebidas Thoquino, que completou 100 anos em 2008. E continua familiar.
O médico dizia sempre a Maria Julia: que este seja seu último filho. Seu corpo não suporta mais uma gravidez, mais um parto. Mas ela não o escutava. Não me cabe criticar ou elogiar minha avó. Ela era senhora de suas decisões – e hoje em dia percebo isso bem melhor. Eu queria muito que, além do busto de vovô em frente à primeira sede da fábrica, fosse erguido outro, em homenagem a essa matriarca que comandou em casa a primeira linha de montagem da Thoquino. Os filhos a ajudavam a buscar garrafas e colocar rótulo nas bebidas.
Orencio, o primeiro filho de minha avó, morreu com apenas cinco meses. Ela não poderia imaginar que teria mais 22. Em ordem cronológica, de 1905 a 1930, nasceram Herculano, Idalina, Olga, Graciema, Ondina, Romualdo, Julia, Gumercindo, Jorge, Alda, Hugo, Maria Carolina, Orencio, Alda, Georgina, Dinah, Carlos Alberto, Maria Antonieta, Aldo, Penha, Arlindo, Roberto. Ainda adotou um, Sebastião.
Imagino a operação de guerra para alimentar, fazer dormir e educar. Almoço era naqueles panelões. Um tipo de comida só, cozido, bacalhoada. Maria Julia contava os filhos na hora de dormir, por volta das 18h, antes de o pai chegar. Havia fila para o banho, na beira do rio.
Eu só aportei nessa história meio século depois da inauguração da fábrica. Atafona, com o mar barrento e bravo do rio Paraíba, era meu paraíso. Quase 50 primos de primeiro grau. A gente se perdia nas dunas, a cavalo ou de jipe. As ruas eram de areia e barro, sem calçamento. Os pomares nos quintais davam abio, cajá manga, ingá, caju, carambola, jaca. Comprávamos caranguejo vivo na porta de casa. Pulávamos carnaval em Grussaí e saíamos em bloco para o mar. Aprendíamos a beijar.
Atafona, hoje, também virou cenário de romance, com ruínas, o mar engolindo o areal e as casas. Nasci no Rio, mas sou um pouco de lá. E isso só percebem os que tentam entender suas raízes e recuperar seus afetos. Na forma de falar, o sotaque campista surge de vez em quando. Espero ter herdado de Maria Julia um pouco de sua força e determinação. Parabéns a vocês, mães e avós, neste domingo.