Márcia Lage
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O menino chorava atrás do pai, que digitava e ria. Estavam dando voltas numa praça, enquanto o dia saía de cena, deixando a criança insegura. Arrastava-se em prantos, pedindo segurança e colo. O pai não via nem ouvia, alegre demais com seu brinquedo de paquera, numa esperança de sexo que o iluminava inteiro. Uma típica avozinha passou por eles e tentou consolar o garoto, menino bonito de uns cinco anos, cabelos encaracolados de querubim renascentista.
– Por que você está chorando, meu bem?
Não obteve resposta, mas pelo vinco das lágrimas no rosto do garotinho a velha – que era psicóloga – intuiu que a causa do choro era um profundo sentimento de abandono. O sábado era o dia dele com o pai, mas aquele estava ausente. Seguia a uns 10 metros à frente do filho, e se a senhora fosse uma ladra de crianças não teria tido problema algum em sumir com o garoto. Bastava um abraço e uma promessa de sopa e banho quentes. Abordou o homem: “Dê atenção a ele, papai. Criança quer carinho e atenção!
Era jovem o pai. 34 anos no máximo. Bonito como o filho, cara de um, focinho do outro. Corpo produzido em academia de ginástica. Testosterona espargindo pela praça inteira. E aquele menino atrás, dando vexame. Que inconveniente o moleque! Comunicava isso a quem quisesse ler a escrita do enfado no sorriso complacente.
– Já vamos comer um hambúrguer, filho, tenha calma.
A senhora não se conteve: “Largue mão deste celular por alguns momentos. A criança quer sua companhia. Você está com ele, mas não está presente. Isso é abandono psicológico”. Aguardou firme o xingamento, mas o homem se tocou. Desligou o celular, tomou o garoto no colo e o afagou. O choro se estancou imediatamente e o menininho se carrapateou no ombro do pai. A velha seguiu caminho, refletindo sobre a dependência digital, tema que ela vinha estudando como psicóloga. Passa por retrógrada toda vez que aborda o assunto. Mas ali estava uma prova do perigo da coisa.
Ela mesma havia perdido contato consigo quando resolveu estudar o assunto. Estava fazendo uma caminhada à beira-mar, plenamente conectada ao momento, quando uma amiga ligou. Saiu de si completamente e não se deu conta mais do caminho que fizera. Em casa, continuou abobalhada por mais de uma hora, vendo posts no Instagram e no Facebook, pulando de vídeo em vídeo no Tik Tok, esquecida de pegar no livro que estava lendo.
A síndrome da “não presença” manifestou-se quando os olhos pediram descanso. Não se recordava do trajeto percorrido: “Como é que eu cheguei aqui hoje”? Estava como bêbada no pós-porre. Só recuperou a memória quando deu mais uma olhada no celular e reviu a mensagem irônica de alguém perguntando se caçava Pokémon. “Caramba, me desconectei do mundo enquanto estava conectada no celular. Que droga é essa que nos aliena tão perigosamente”?
Dormiu pouco, imaginando as consequências de tamanha desatenção. Podia ter sido assaltada, atropelada, arrastada para o mangue e assassinada. Era exagero, claro, mas valeu para ilustrar a insônia e refletir sobre a capacidade de alienação desses aparelhinhos e o futuro da humanidade. Sem presença, sem contato conosco mesmos e com o universo ao nosso redor, o que será de nós daqui a 10, 20 anos? Com essa tecnologia que não para de avançar e de nos desafiar, como entender nosso papel no mundo, se não nos recordamos da nossa trajetória diária?
Até então ela pensava no assunto só pelo lado da dependência tecnológica. Mas quando teve o ímpeto de abordar o pai e exigir dele atenção ao filho, doeu nela o abandono parental. No tempo dela criança, faltou amor. Os filhos eram estorvos nascidos aos montes, por falta de pílula. No tempo dos filhos dela, o excesso de trabalho tentou cobrir a ausência com mimos e mesadas. Agora, o celular. Que une todo mundo e desune quem mais precisa de abraço, de colo, de atenção plena para crescer com confiança.
Desligou o aparelho. Tinha passado a vida inteira sem ele. Decidiu que só o usaria três vezes ao dia. Nos intervalos, estaria inteiramente dedicada a amar a vida e aos seus amigos. Que os escutaria quando precisassem, mas não a qualquer hora do dia ou da noite. Haveria tempo para ela. Para meditar, fazer Yoga, ginástica, caminhadas atentas ao humor dos dias e ao canto dos passarinhos.
Decidiu, principalmente, que não ia se deixar seduzir por tudo de novo e moderno que a tecnologia digital criasse para afastá-la de si mesma. Metaverso, por exemplo, nem pensar.
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