Márcia Lage
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Toda família grande é circo, hospício e tribunal de execução. Na infância, circo, quando cada filho busca seu lugar no picadeiro. Há o domador de leão, os acrobatas, os que engolem querosene e cospem fogo, os atiradores de facas, os ingênuos que se deixam ser alvos das facas e os palhaços, claro.
De vez em quando fazem um número coletivo. Aprendem a se equilibrar uns sobre os outros para formar pirâmides de curta duração. Na infância, o que todo irmão quer é ocupar o lugar do outro, fazer aquilo que o outro fez e agradou a todos.
Seguem assim até à vida adulta, quando o alegre circo se transforma em tribunal de júri. Na frustração de não poder ser aquilo que o outro é, os irmãos começam a se culpar pelos fracassos, a apontar privilégios e sabotagens, a se elevar ou se diminuir diante dos outros, numa eterna competição que só gera despeito, insegurança e desunião.
Assim como na infância os papéis circenses e lúdicos se estabeleceram, no tribunal de júri da vida adulta da família os personagens também se firmam. Há o promotor, os advogados de acusação e de defesa, jurados atentos e um juiz de martelo em punho, pronto para estabelecer a sentença. Que pode ser o desprezo, a exclusão, o degredo, o purgatório. A pena capital só não é aplicada porque os pais, ainda vivos, entram sempre com habeas corpus e liminares em favor dos condenados.
A familia começa a se transformar em asilo de loucos quando os pais ficam velhos e doentes. Sem a imparcialidade deles para ajustar disputas por afeto, o circo pega fogo e o tribunal se torna injusto e grotesco. A família de idosos não se preparou para a mudança dos papéis, para deixar de serem filhos quando a orfandade chega.
Na hora mais amarga da vida, quando todo amor, paciência, solidariedade e união se fazem necessários, os idosos voltam à infância, reivindicando lugar de fala, trocando farpas, insultos e cobranças. A família enlouquece. Se houver herança na disputa, Virgem Maria, aí é que cada um revela o que a casa criou.
O psicoterapeuta alemão Bert Hellinger (1925/2019), criador do método sistêmico da Constelação Familiar, afirmava que a família é uma microssociedade, onde se aprende desde cedo, pelos confrontos que a infância proporciona, a compartilhar, ceder e amparar.
Na opinião dele, todo irmão depende do outro e precisa cooperar pelo bem comum, respeitando a hierarquia, dando e recebendo, para que a ordem e o equilíbrio se estabeleça.
A Constelação Familiar, embora aplicada com êxito até em tribunais de júri, não é considerada uma ciência. Porque, na prática, família é circo, tribunal, asilo e hospício. Uma microssociedade com os defeitos e as loucuras que a grande sociedade nos impõe.
Nisso, não há Deus que impeça Caim de matar Abel, porque a raça humana continua dominada pelos sete pecados morais que motivaram o primeiro homicídio biblico: a inveja, a soberba, a avareza, o ódio, a luxúria, a gula e a preguiça. E é na família que esses ingredientes fermentam e desandam.
Família é toda igual. Só muda o endereço.
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