Márcia Lage
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Quarenta anos depois da minha primeira viagem solo (que foi um audacioso desbravamento das regiões norte e nordeste), retornei a um dos locais mais inspiradores que encontrei naquela travessia: Alter do Chão, uma vila incrustada no aguaceiro do Tapajós, surpreendentemente preservada em seus costumes e tradições, apesar de ser, atualmente, um roteiro turístico razoavelmente famoso, com festival de cinema e tudo.
Tanto naquele tempo, como agora, não é um lugar fácil de se chegar, embora já existam voos diretos para Santarém, partindo das capitais do sudeste. A cidade fica no meio do caminho entre Manaus e Belém e Alter do Chão é a praia dos santarenos.
Na primeira viagem, voei até Manaus, que esmiucei palmo a palmo, e vim descendo o Rio Amazonas, num barco de dois andares, que parava em cidades com nomes portugueses e se enchia de gente, mercadorias, mudanças, redes. Dormíamos no convés, com o vento refrescando as noites.
Meu destino era Belém, mas quando cheguei na metade do caminho já estava entediada de tanta água barrenta e falta de márgens onde descansar os olhos. O barco saiu do rio Amazonas, entrou no Tapajós, que parecia um vidro líquido correndo paralelo, e atracou em Santarém.
Desci quando vi o casario antigo, entrei em um hotel familiar de construção lusitana e dei por encerrada minha travessia náutica, que já havia comido três dias da minha aflitiva ânsia de viver.
Decidi que chegaria a Belém de avião, por uma empresa aérea que se chamava TABA – Transporte Aéreo da Bacia do Amazonas.
Foi quando me falaram de Alter do Chão. Não me recordo de como cheguei lá. A estrada era de terra, tomada de verde nas duas margens. Havia apenas umas quatro familias de ribeirinhos no lugar. Uma delas me alojou e colocou à minha disposição um menino de uns 10 anos, que foi meu canoeiro e guia.
O rio Tapajós tem em média 15 km de largura e quando chega a Alter do Chão, pouco antes de seu espetacular desmanche no Amazonas, estica um braço por entre a mata, formando lagos, inundando igarapés, criando praias no verão e igapós no inverno. Passear por essa biodiversidade é uma aula prática de geografia, botânica, riqueza hidrográfica, hábitos e culturas de um povo ancestral.
Foi uma epifania descobrir Alter do Chão, que considerei perfeito para me esconder do mundo, caso um dia precise. Continua exuberante, mas já tem hotéis, bons restaurantes, a estrada é asfaltada e o turismo se profissionalizou, oferecendo roteiros diversificados.
A tradição da culinária, no entanto, à base de peixes, de sucos de frutas colhidas na floresta e do carimbó, dançado na praça, mantêm-se intacto. Uma riqueza que merece ser compartilhada com o Brasil, que pouco se conhece.
PS: Deve haver pacotes turísticos para lá. Eu, que faço meus trajetos, sugiro um voo inicial por Belém ou Manaus, a exploração dessas duas capitais, que são incríveis, e o percurso de barco até Santarém ou outro bilhete de avião até lá. Não ê barato.
Infelizmente, nossas companhias aéreas ainda têm uma estratégia pouco competitiva e não oferecem “stopover”, escala onde a pessoa pode permanecer por um ou mais dias, antes de seguir para seu destino final. Seria uma forma de permitir aos brasileiros, tão ignorantes em relação a esse imenso tesouro, um mergulho mais profundo na grandiosidade da Amazônia.
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