Márcia Lage
50emais
Estamos marcando encontros urgentíssimos, os velhos amigos. Obedecendo ao imperativo do tempo: se não for hoje, amanhã pode não ser mais! Pulamos de festa em festa, de bar em bar, de visita em visita, sem tempo ruim que impeça a celebração de qualquer coisa:
Chegamos à idade em que os sacrifícios já não compensam. Estamos todos mais gordinhos, mais enrugados, mais feios. No entanto, nunca fomos tão alegres e despreocupados. “No fim, tudo vai dar errado mesmo, então o melhor é relaxar e desfrutar de tudo o que ainda podemos fazer”, resume um dos colegas.
Somos um grupo que nunca se larga. No próximo domingo faremos o nosso tradicional encontro de fim de ano. Festa que acontece ininterruptamente desde que saltamos do século XX para o XXI. Ora na casa de um, ora na casa de outro, a política tomando conta da cena e a gente envelhecendo juntos.
Nossa primeira baixa aconteceu no ano passado. Um dos queridos amigos se foi, aos 67 anos. Não teve missa de sétimo dia, mas um grande encontro num bar, onde bebemos à sua memória, cantando, declamando poesia, folheando saudosos um álbum de fotografias com a nossa juventude encadernada.
Este ano, a demência de um dos nossos revelou preconceitos que não sabiamos ter. A pessoa foi desconvidada da festa. Não sabemos – ainda – como lidar com uma mente que se emaranhou, com uma personalidade que revela, ao extremo, os conflitos engavetados nos anos em que teve que permanecer alerta e forte, sã a qualquer custo, para dar conta de levar a termo a vida que se impunha. Agora a sangria desatou. Causa desconforto ouvir seus casos desconexos, entremeados de palavrões, explosões de alegria e choro.
Mais que vergonha alheia, o Alzheimer do outro expõe nosso pavor de sermos o próximo a desatinar.Sabemos que cedo ou tarde teremos algum grau de doença degenerativa – mental, física ou intelectual. Temos que aprender – com esse caso – a não aprofundar o estigma contra a senilidade e nos preparar para o que pode acontecer num futuro bem próximo.
Para não expor o amigo a situações vexatórias (para quem, se ele já não sabe bem o que faz?) acatamos o voto da maioria e teremos essa segunda baixa na festa. Mas não vamos abandoná-lo. Estaremos sempre por perto, em.visitas, mimos, paciência.
Mesmo que a conversa seja bagunçada e que a nossa presença nem seja reconhecida, um olhar, um cheiro, a voz, o toque e o carinho de cada um ficarão registrados no coração do amigo. É ali que nossa longa amizade continua pulsante, irrigando de alegria um personagem que encena seu derradeiro ato.
Leia também da autora:
Ventos quentes da terra em transe afeta até a tecnologia
Celular perdido: uma morte que nos afeta profundamente
Além de cara, nossa burocracia atrasa o país
Tive o privilégio de ter mãe por 68 anos. Herdei dela preciosidades
Filme mata Ângela Diniz mais uma vez
Recomeçar do zero é uma possibilidade real para aposentados
Minha nova amiga, de 90 anos, alivia o meu medo de envelhecer
A sertaneja que mora em mim me protege