Até hoje, cinco anos depois, muitos brasileiros se perguntam como a Vale, uma das maiores mineradoras do mundo, não tomou as medidas necessárias para evitar a tragédia de Brumadinho, quando a enorme barragem da Mina do Feijão, de propriedade da empresa, rompeu, cobrindo com toneladas de rejeitos 272 pessoas.
Foi a segunda tragédia de proporções gigantescas com barragens da Vale. Pouco mais de quatro anos antes, em novembro de 2015, 19 pessoas haviam perdido a vida em outro rompimento. Desta vez, na Mina do Fundão, da mineradora Samarco, que é controlada pela Vale e pela BHP Billiton, na cidade histórica de Mariana, primeira capital de Minas.
A destruição causada pelas duas tragédias está sendo contabilizada até hoje. Sem falar no número de mortos e nos transtornos sem fim causados aos moradores e familiares das vítimas. No caso de Brumadinho, uma mãe revive todos os dias o pesadelo da perda dos dois filhos, da nora grávida e do ex-marido. Num único dia, de repente, perdeu toda a sua família.
Helena Taliberti faz ao portal Uol um relato devastador de seu drama, iniciado às 12h28m daquele fatídico 25 de janeiro de 2019, horário em que a barragem veio abaixo.
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Eu estava em São Paulo, quando vi no celular uma notificação desses portais de notícia sobre o acidente. A barragem Córrego do Feijão, em Brumadinho, tinha se rompido.
Na hora, mandei mensagem para os meus filhos, mas eles não responderam. Falei com os amigos deles e ninguém conseguia contatá-los. Alguma coisa estava errada.
Nós começamos a ficar bem preocupados, já não dormimos. Não tínhamos nenhuma notícia, nada…
Meu filho Luiz e minha nora Fernanda, que estava grávida, vieram de passar as férias aqui no Brasil. Há um tempo eles moravam na Austrália. Luiz foi quem organizou a viagem para Inhotim.
Ele foi com o pai biológico e a madrasta, minha filha Camila foi no dia 24 e a Fernanda iria também, mas a mala dela extraviou e ela só conseguiu um voo no dia seguinte.
O Luiz e o pai foram buscá-la. Eles chegaram na pousada em que estavam minutos antes do rompimento da barragem.
Um primo do meu esposo, naquela ocasião, pertencia à Polícia Civil de Minas Gerais. Ele nos advertiu que, em Brumadinho, solicitavam que aqueles com parentes desaparecidos se dirigissem para lá.
Conseguimos chegar em Brumadinho no domingo. Na cidade, havia um espaço que recebia os familiares das vítimas, mas ninguém tinha notícia dos meus filhos, eles não apareciam na lista de desaparecidos.
Nos pediram para fazer uma série de cadastros e depois de tudo isso foi que tivemos a confirmação das mortes e que a pousada em que eles estavam foi a única que foi levada pela lama…
O Luiz foi encontrado na terça-feira e Camila na quinta-feira junto com o pai biológico.
Quando eu fui reconhecer os meus filhos houve uma confusão porque meu nome na minha carteira de identidade estava diferente do meu nome no RG deles porque eu tinha me separado.
Eu tive que mostrar minha certidão de casamento com o pai deles para comprovar que era a mãe dos meus filhos.
A gente fez uma missa numa igreja que tinha lugar para 500 pessoas e ela estava lotada e ainda tinha muita gente do lado de fora.
Só que voltamos para Brumadinho para esperar o corpo da Fernanda ser encontrado, o que aconteceu em 16 de fevereiro, 22 dias depois do rompimento da barragem.
Ela foi cremada no dia 27 de fevereiro, no dia do meu aniversário.”…
Quem foram Camila e Luiz
“A Camila tinha 33 anos quando morreu. Ela era muito inteligente, perspicaz, estava sempre antenada com os assuntos do momento e por isso que eu falo que ela veio para me mudar.
Ela era muito engajada, ia em várias manifestações. E eu confesso que achava às vezes até um pouco exagerado, mas depois eu percebi que ela estava certa.
A Camila foi uma criança muito interessante. Era tranquila, alegre, cheia de amigas e, na adolescência, gostava bastante de sair. Amava carnaval e dançar.
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Meu marido era Engenheiro, da área de tecnologia e eles tinham muita afinidade com isso. Ela, advogada, se especializou em direito digital. Os dois trabalharam na elaboração da lei de proteção de dados. A Camila estava assim super bem na profissão quando morreu.
Também tinha um trabalho voluntário e a gente só ficou sabendo depois que ela morreu que ela atendia mulheres que tinham sofrido violência doméstica…
E nós estávamos sempre juntas, íamos bastante para os botecos. Ela dizia que éramos belas, desbocadas e do bar. Lógico que brigávamos às vezes que nem toda mãe e filha brigam, mas tínhamos um relacionamento muito gostoso.
A Camila e o irmão eram muito grudados. O Luiz era mais novo, tinha dois anos a menos que ela. Tinha 31 anos quando morreu. E ele era bem diferente da Camila, mais caseiro, mais focado. Mas me deu muito trabalho para estudar.
Ele era muito educado, um menino ótimo, mas de estudar não gostava muito, passava a aula desenhando e conversando.
Ele quase bombou o terceiro ano do colegial, isso só não aconteceu porque ele conseguiu entrar na faculdade de arquitetura. Ele entrou sem cursinho sem nada.
Quando isso aconteceu, eu não estava no Brasil. A Camila morava fora e fui visitá-la, eu liguei para ele um dia e ele falou: ‘Tô fazendo minha matrícula na faculdade’.
Ele se formou e foi para Austrália, arrumou um trabalho legal, já estava lá há quase cinco anos, tinha sido nomeado diretor do escritório que trabalhava em dezembro, um mês antes de morrer…
O Luiz era uma pessoa muito para frente, muito equilibrada. Ele sempre falava ‘O que passou, passou, é passado. Foco no futuro e toca vida’.
Eu senti muito a falta dele quando ele foi para a Austrália, fiquei bem ruinzinha. Mas ao mesmo tempo eu estava muito feliz, até porque depois ele encontrou a Fernanda que era uma menina maravilhosa e ela ficou grávida. Eles estavam juntos há uns dois anos.”
Quando o luto se torna legado
“Meus filhos não tinham reservado aquela pousada. Eles tinham reservado uma outra, mas o pai deles quis ficar lá e teve uma desistência naquele final de semana.
Aí quando esse tipo de coisa acontece, você não sabe o que pensar. Você briga com Deus, depois faz as pazes, você começa a questionar porque isso foi acontecer. A cabeça fica muito desorganizada.
A vida de todo mundo continua, mas a sua não, você não consegue viver de novo.
Aquela Helena que tinha a Camila e o Luiz, que vibrava com a vida, morreu.
No início foi um inconformismo enorme, uma indignação imensa. E não foi um luto normal, porque foi um luto coletivo.
E também não é normal porque a gente sabia que essa tragédia podia ter sido evitada. A empresa sabia do perigo daquela barragem e não fez nada.
Teve Mariana antes de Brumadinho. Mariana foi a sirene de Brumadinho que ninguém escutou. Se tivesse sido ouvida, não teria acontecido o que aconteceu.
Hoje, a indignação é a mesma, mas a gente consegue transformar o luto em luta.
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Os amigos e as amigas da Camila e do Luiz, estão sempre conosco. E lá no começo, depois de um mês da morte dos meus filhos, a gente se reuniu e nos propuseram a criar uma organização para falar sobre o que aconteceu.
Ainda há muitas barragens com níveis de segurança muito baixos e que podem romper a qualquer momento.
O Instituto tem como objetivo a defesa dos direitos humanos em duas vertentes: Empoderamento dos grupos vulneráveis, especialmente mulheres por conta do legado que a Camila nos deixou, e a proteção do meio ambiente, os dois eram muito engajados com essa questão.
A Camila foi um exemplo para mim de engajamento nessas causas, eu aprendi muito com os meus filhos, muito. Nós estamos seguindo os passos deles, não tenho dúvida disso.
E ter o instituto com os amigos deles para nós é muito bom, eles têm um jeito muito gostoso de se relacionar conosco. Eles nos acolhem de uma maneira muito carinhosa, sempre muito amorosa. Tem sempre uma mensagem de alguém no celular, um convite para sair, para almoçar, para boteco. É muito gostoso conviver com eles.
E eu acho que é esse carinho, esse aconchego, esse acolhimento é o que nos faz ter força para continuar e de lutar mesmo por justiça.
Ninguém vai trazer meus filhos de volta, mas a gente vai continuar lutando por justiça.
Eles não podem ter morrido em vão. Nós temos que seguir em frente.”
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