Cristina Pereira, 74, a Marieta da novela Família é Tudo, da TV Globo, ganhou grande espaço na mídia, durante o Festival de Cinema de Gramado, no mês passado, ao contar, pela primeira vez, que foi estuprada, forçada a fazer sexo, quando tinha apenas 12 anos.
A atriz é mais uma vítima da violência sexual no Brasil que vem a público para denunciar o que aconteceu com ela, no início da adolescência, e está acontecendo agora com tantas outras meninas. É um problema seríssimo e pouco discutido no país.
Daí a importância da denúncia. E como foi para ela confessar publicamente a dor que vem carregando todo esse tempo? “Falar o que aconteceu é uma libertação, um caminho de uma justiça, para não acontecer mais. Um caminho longo, né? Difícil” – responde.
Leia a entrevista completa com a grande atriz, feita por Maria Fortuna, de O Globo:
“Bobagem! Será que é tão triste assim ser desejado?”. É isso que a a personagem de Cristina Pereira diz ao neto (vivido por Rafael Vitti) quando ele revela que foi vítima de assédio sexual numa cena de “O clube das mulheres de negócios”.
O filme inédito de Anna Muylaert, exibido pela primeira vez no Festival de Gramado, apresenta crítica mordaz ao patriarcado propondo uma inversão dos estereótipos de gênero em que mulheres ocupam posições de poder enquanto homens são criados para serem submissos.
“Homem bravo é feio, viu? Fica esperto se não nenhuma mulher vai querer casar com você”, continua Cristina, que vive a presidente do tal clube, onde jovens garçons servem drinks de shortinho diante de olhares femininos devoradores. Mexer com o lado perverso de ser mulher neste mundo deu gatilho em Cristina. Tanto que a atriz de 75 anos parou Gramado ao revelar ter sido estuprada aos 12 anos.
Nesta entrevista, uma das maiores atrizes do país, dona de interpretação regada à brasilidade e humor crítico, define seu desabafo como um “vômito”. Revela que a violência roubou sua autoestima para sempre. No ar na novela “Família é tudo” e convidada pelo produtor Eduardo Barata para estrelar a peça “As tias de Adolfinho” após 10 anos longe dos palcos, ela também conta como a situação do Brasil impacta sua atuação.
Como foram os bastidores do filme, com atrizes de várias gerações reunidas?
A preparação foi muito especial. Nem todas nós nos conhecíamos. A Anna propunha laboratórios, exercícios de igual para igual, ela entrava junto. Fazíamos mesas para falar da vida, de política. Contei quando vi Irene Ravache pela primeira vez ensaiando com Antunes Filho 1968, em “A Cozinha”. Essas conversas permearam o trabalho de grande afetividade.
Pode ser bom ver mulheres no poder, mas é desconfortável assistir a cenas de violências comuns no mundo patriarcal, mesmo sendo homens vivenciando…
Eu assisti no Festival de Gramado, e foi um impacto. Acompanhei completamente ligada, não piscava o olho. Eu tinha gravado novela no dia anterior, acordado de madrugada para viajar e achei que ficaria cansada, com sono. Mas fiquei elétrica. A gente percebe muita coisa no filme. O casal em que o marido não pode dar opinião sobre nada. “Tá triste por que? Te comprei uma bolsa”, diz a mulher a ele. A forma como as mulheres olham homens servindo de shortinho. O sexo como arma.
A forma como a minha personagem trata o abuso do neto. Aquilo foi minimizado, tratado como desejo. Não é desejo, né? E o menino completamente humilhado.
Achei tudo muito interessante, provocativo. Esses textos na boca da mulher ampliam tudo para pessoas entenderem. O público se pergunta: “Como uma mulher faz isso?”. Os homens fazem isso tempo inteiro.
Um amigo incentiva o neto a desabafar, a contar. É o que nós mulheres estamos fazendo hoje, com movimentos como o #Metoo, Meu Primeiro Assédio…
A ordem sempre foi não falar. “Silêncio, é uma vergonha”. Como assim? É crime! Um crime contra a pessoa, a mulher, as meninas, as moças… Falar o que aconteceu é uma libertação, um caminho de uma justiça, para não acontecer mais. Um caminho longo, né? Difícil.
O que te fez querer expor o que aconteceu com você? E o que sentiu quando falou?
Estávamos na coletiva após a exibição do filme. Falávamos sobre casos engraçados que aconteceram com os bichos que estão no filme, De repente, apareceu a história do abuso do menino. Destampou um negócio dentro de mim. Não foi planejado, pensado. Quando vi, estava falando. Sabe quando te dá um treco? Me deu um surto. Quando comecei a falar, tinha muita raiva. Então, comecei a chorar. E não tinha mais controle sobre isso. Foi um vômito.
No momento em que falei, entendi um monte de coisa, valeu por anos de análise. As vezes em que falei isso em terapia, não deram bola. Foram duas vezes, em dois momentos diferentes da minha vida e a reação foi, tipo: “Ah, esse é um assunto que já superou”. A gente nunca supera, jamais. Falei muito reservadamente, para poucas amigas, depois da morte da minha mãe. Só me senti autorizada depois disso. Ela não queria que falasse. Respeitei. Aconteceu em 1961, eu tinha 12 anos. Ela carregou isso sozinha até falecer, aos 98 anos. Ela não quis falar nem para o meu pai.
Acha que sua mãe carregava certa culpa por não ter falado sobre educação sexual com você em casa?
Não sei o que acontece com uma mãe, que fala: “Poxa, nunca falei disso aqui em casa”. Embora ela fosse uma mulher, uma mãe muito legal, muito presente… Naquela época, década de 1950/60 não se falava muito sobre isso. Ela soube um ou dois dias depois e ficou apavorada com o que podia acontecer, eu ficar grávida desconhecido.
Eu era bolsista. Geralmente, ia a pé com colegas mais velhas. Nesse dia, tinha ido sozinha, um trecho pequeno. Era prova de francês, e eu focada, passando os verbos na cabeça. Depois desse fato horrível, cheguei atrasada sem entender o que estava acontecendo, meio desfeita, com a roupa desarrumada e a pessoa que me recebeu no portão da escola não achou nada estranho. Não sei se não quis falar. A atitude foi nenhuma. Era, no mínimo, esquisito. Mas naquela época, as pessoas não pensavam essas coisas e a comunicação não era comum. Hoje, pega um celular e fala com a família.
Mas é isso: educação sexual é o que protege a criança. Muitas famílias não têm condições de dar. Por desinformação ou porque trabalham o tempo todo e não estão em casa. Não cabe julgar. Ou dão de forma torta, cheia de preconceito. Então, nesse aspecto, o papel da escola é muito importante. Se a criança tiver informação, pode se proteger.
Você tem dois filhos, Letícia e Lourenço. Eles sabiam que isso tinha acontecido com você?
Minha filha sabia. Meu filho, não. Eu estava em Gramado quando ele me ligou e disse: “Mãe, tá uma loucura na internet”. Eu não sabia de nada porque não sou muito “internáutica”. Mas, aí, a gente vê a importância de falar, de ajudar outras mulheres, meninos também. Recebi duas respostas interessantes de homens desconhecidos, que não são artistas…
Um senhor de uns 60 anos, na porta do elevador, me disse: “O depoimento da senhora, foi comovente, também tenho questões…”. Os olhos dele se encheram de lágrimas.
O outro, na porta de um táxi disse que também tinha visto e me pediu uma foto. Eu olhei para ele e disse: “Triste, né? Meu pai, por exemplo, nunca soube, morreu sem saber”. Quis falar para ele a parte masculina da história. E ele: “Como seu pai ficaria triste”.
Você contou para a diretora do filme durante a preparação, né?
Sim. Um dia estávamos numa mesa e ela disse que a maioria das mulheres passou por situação de abuso, assédio. Pediu para levantar a mão. A maioria levantou, e eu também. Depois, falei para ela, meio à parte, que tinha sido uma coisa bem grave. Ela sabia, assim, muito rapidamente, mas ela sabia.
Você se consagrou com humor contemporâneo e crítico, faz a gente morrer de rir sem cair na caricatura. Também emociona e hipnotiza com uma atuação humana, carregada de desenhos sentimentais. Como rega seus personagens de brasilidade?
Não sei muito bem o processo. Cada trabalho é diferente. Agora, estou mudando meu processo por dificuldades inerentes à minha idade. Ontem, assisti a uma cena da Fedora (sua personagem na novela “Sassaricando”) porque o Daniel (Ortiz, autor de “Família é tudo”) queria fazer uma homenagem. Tinha espontaneidade, energia, ferocidade, muita intuição e vontade no que eu fazia que eu nem lembrava mais. Eu ficava feliz, gostava muito de fazer, tinha uma conexão com aquilo. Tinha coisas que aprendi na escola de Artes Dramáticas da USP, coisas de filmes que tinha visto. É um arsenal que vai contribuindo para o nosso trabalho. Era intuitivo, mas também percebi que tinha que estudar. E fui. Agora, estou baixando a bola, experimentando algo mais para o dramático.
Como em “O clube das mulheres de negócios”…
Sim. Nos filmes da (cineasta) Ana Carolina, muito importantes na minha trajetória, eu fazia uma coisa maldita, como a Betinha de “Mar de Rosas”. Ficava contaminada pelo personagem. Morava em Copacabana, tinha um namorado esquisito, louco, que transava com outras pessoas. Era difícil. Eu misturava tudo. Ia fazer aquela cena que enfiava o alfinete no pescoço da Norma Bengel (risos)… Aquilo mexia comigo. Fazia arroz, queimava e ia pro pronto-socorro. Enfim, coisas que tive que viver, fazem parte das experiências da maturidade.
Não era para ser eu a Fedora, acho que outras desistiram. Eles fizeram testes comigo e o Diogo (Vilela). A gente ficava improvisando umas cenas. Digo foi muito importante no trabalho, porque também é diretor, tem bom gosto e é perspicaz. Falava para eu virar a cabeça para lá, fazer assim, assado… Me deu muitas dicas, assim como no “TV Pirata”.
E Fedora foi aquele sucesso, me resgatou do meu primeiro personagem na Globo (na novela “Elas por elas”, em 1982): a menina feia e rica, que não era amada e era vítima de golpe do baú. Eu ia nos lugares e falavam: “Olha aquela mulher feia da novela”. Antigamente, o público tinha outra relação com novelas, misturava personagem com a gente, queria bater na vilã na rua…
Mas o (autor) Silvio de Abreu me tirou do lugar da feia que ninguém quer. Me colocou para fazer a maravilhosa. Foi uma coisa muito importante para mim. Hoje, acho que tem uma reflexão nisso. Mas, na época, eu ficava triste. Ia levar minha filha em festa de aniversário e diziam: “Olha lá a horrorosa”. Meu marido e minha filha ouviam. É difícil receber isso na cara.
O estigma da feia te perseguiu em outros trabalhos?
Fiz comerciais em que sempre era a feia. Num deles, entrava numa piscina, o cara me afundava para eu desaparecer e surgia uma mulher bonita. Tipo sai pesadelo e entra o sonho. Era algo muito em voga na época. Geralmente, uma atriz boa fazia feia, porque sabia. A bonitona bastava ser bonitona.
Você é vaidosa?
Não me considero uma pessoa vaidosa, mas devo ser. Todo mundo é um pouco. Deveria ser mais no sentido de cuidar da aparência. Quando falo que sou leão todo mundo estranha (risos). “Nem parece! Tem certeza?”. Ouço essa frase desde que eu era pequena.
Mas acho interessante o tipo de comédia que o Silvio de Abreu fez, mexia com valores. A mocinha podia não ser bonita, ele desmontou essas questões. Agora que estou bem mais velha, estou fazendo personagem mais na real, pé no chão.
Mais minimalista?
Sim, e mais consciente de tudo que está acontecendo. Passamos maus bocados politicamente falando. Depois dessa coisa toda que tivemos… veio o Collor, não sei quem, depois aquele horroroso, inominável Bolsonaro. Como alguém que se conscientizou politicamente…
Sente-se completamente afetada pela realidade do país…
Sou completamente afetada pela realidade do país, por tudo que acontece. E minha atuação também. Então, trouxe para o meu trabalho um pouco dessa coisa mais dramática do pessoal pé no chão do Brasil que está falando um pouco assim: “Como é que a gente está assim?”. Tínhamos aquela alegria que vinha da comédia da Atlântica, Zezé Macedo, aqueles atores maravilhosos do cinema brasileiro… Depois, a gente traz uma coisa ligada a uma realidade mais triste.
Hoje tem os Yanomamis morrendo, estupraram uma menina indígena…. Não dá, te afeta. Vejo na TV, está tudo nas redes e eu fico passada. Faço uma força e vou gravar. Mas isso permeia as personagens. A Marieta de “Família é tudo” ficou mais introspectiva.
É verdade que pediu um papel ao autor Daniel Ortiz?
É, no dia do meu aniversário. Nunca tinha falado com o autor. Achava invasivo, mal educado, feio. Mas aí liguei e falei: “Tô fazendo 74 hoje e perdi a vergonha. Sei que o elenco está completo, mas queria fazer participação na sua novela. Ele me deu um personagem inteiro”.
Uma vez, escondeu maconha no cabelo ao voltar de viagem na juventude. Embora fosse ditadura, eram tempos menos caretas?
Sim. Embora eu fosse uma menina travada. Era muito tímida, isso tem razão numa série de coisas. Escola de freiras, o fato que contei em Gramado… Isso tira a autoestima de uma adolescente.
Você até disse: “Mataram aquela menina”.
A gente se sente mal, diferente. Fui para o fim da fila na escola quando aconteceu. Mudou meu comportamento. Pensava: “Não sou legal”. A gente pensa no que a sociedade te fala: “Como deixou acontecer?”. Culpa. Me sentia boba, burra, era uma baixíssima autoestima.
Impactou sua vida inteira. A questão sexual também?
Menina, adolescente, mulher, na questão sexual… Não tinha namorado. Ficava apaixonada e não sabia o que fazer. Entrava um cara novo no elenco, a gente ia para bares, eu ficava envolvida, mas vinha outra e pegava. Como ele ia me ver? Eu não me via. Me via como uma pessoa bobinha.
O etarismo te afeta? Como?
O que eu sinto é que não te ouvem mais. Assim, no começo, eu não entendia porque a questão do etarismo estava sendo levantada por mulheres mais novas. O tal lugar de fala, né? Ficava meio esquisito. Hoje a mulher de 50 anos, 55, 60, é uma moça. Depois, entendi. É que a sociedade envelhece a mulher mais cedo. Um homem de 70 está passeando nessa calçada aqui com uma mulher de 30. Isso é normalizado. Se for o contrário…
Agora que estou no terceiro ato da vida, o que eu sinto é que as pessoas não te escutam mais. Você está numa roda de conversa, vai dar uma opinião e não te ouvem. Tem que entrar de sola para conseguir falar. Você começa a falar e simplesmente te ignoram. Não é proposital ou agressivo. E são até pessoas legais… Mas você acaba não sendo mais ouvida nem vista. Isso é gradativo. Não sei qual é a raiz disso. Mas acontece bastante.
Ainda mora em São Cristóvão?
Sim. Fiz o contrário de quem vai da Zona Norte para a Zona Sul, entende isso como progresso. Vim de São Paulo em 1982, com minha filha, meu marido. Moramos em Ipanema, numa casa emprestada pelo Wolf Maya, Gávea e São Cristóvão.
Por que fez essa opção?
Não estava bem de saúde. Tive tido síndrome de pânico em 2007. Em 2008, problema no coração. Fiquei sentada na porta do Shopping da Gávea, fui internada e coloquei stents. Várias reviravoltas. Queria ter a minha casa, gastava muito na vila na Gávea. Acabei comprando apartamento em Botafogo porque fiquei com pena do corretor, ex-locutor da Rádio Nacional. Depois, fiquei sufocada com prestações e consegui transferir valores para São Cristóvão.
Como se tratou do pânico?
Com psiquiatra. Fiquei medicada sete anos. No começo, não conseguia sair na rua. Estava sem trabalho, com apartamento pendente e sem saúde. Paralisei. Não tinha capacidade de estudar texto. Era comédia, e eu não sabia onde estava a graça. O ator Anderson Cunha passou a me acompanhar para decorar e entender textos. Me acompanha até hoje.
Que lembrança mais legal guarda o TV Pirata? Grupo não é fácil… Tinha arranca-rabos?
Era muito interessante porque a gente opinava como deveria ser o cabelo, a maquiagem do personagem. A direção aceitava. Era uma criação conjunta. Hoje, em novela, você não opina em nada. No texto também não. Chega e está tudo pronto. No TV Pirata, diziam que todos tinham o mesmo salário. Ou quase. Isso foi uma luta de (Marco) Nanini e Ney (Latorraca), que queriam todos no mesmo barco. Dava muito trabalho, a gente gravava de madrugada, mas era muito prazeroso. Eram dez atores no elenco original que vinha do teatro. Gente muito talentosa, mentes brilhantes. Eu me dava bem com todo mundo.
Outro lugar em que se podia dar opinião era a Casa da Gávea (extinto centro cultural que ela fundou com Paulo Betti, Eliane Giardini, Vera Fajardo e outros). Tenho muita saudade. Foi um trabalho importante de 25 anos. Fizemos leituras, pesquisas, montamos peças, cursos. A gente brigava, mas era um espaço de discussão de ideias. Sempre quis trabalhar em grupo. Pra mim, a solução de tudo está no coletivo. Fiz o projeto Olha Pra Mim, uma ideia de educação, saúde e cidadania para a população situação de rua. Foi a coisa mais importante que fiz na vida. Sentia que estava colaborando, sendo útil.
Estou na novela é um pequeno coletivo, mas não tem essa troca. É um trabalho bonito, importante, mas não é voltar para casa pensando naquilo, anotar num caderno e botar embaixo do travesseiro uma ideia que você teve. Essa coisa efervescente que, para mim, é vida, energia, eu não tenho agora. Eu tinha na Casa da Gávea.
Como construiu sua consciência política?
Minha mãe era auxiliar de enfermagem, uma excelente enfermeira, mas não tinha nível superior. A gente morava na Vila Gustavo, uma região periférica de São Paulo na época. Não tinha médico nem hospital. Minha mãe ajudava as mulheres a ter bebê, a amamentar. Era uma pessoa importante naquela comunidade, mulher forte.
Mas minha mãe era uma mulher muito pobre. Ficou órfã de mãe com três anos, a mãe dela ainda a amamentava. Ela lembrava vagamente da mãe. O meu avô não sabia o que fazer com ela e a irmã dela, uma de 4 a outra de 7 anos. Moraram em várias casas. Elas eram tipo mini empregadas domésticas. Subiam num banco pra fazer comida, lavar roupa. Até que meu avô se casou com outra mulher e elas foram morar numa outra família. Mas sempre tiveram muita dificuldade. Meu pai era barbeiro.
Quando eu e minha irmã éramos adolescentes, minha mãe foi ser governanta num palacete daqueles de família do café, um porção de empregados. Morávamos lá. Lembro de ficar vendo de longe a televisão que a dona da casa assistia. Lembro do discurso do Jango (João Goulart, ex-presidente do Brasil) na Central, e meu pai dizendo: “Não vão deixá-lo governar” (Cristina se emociona e chora).
Lembro de outra cena: aos 11 anos, subi a escadaria e falei: “Sou comunista!”. E eles: “O que essa menina está falando? A filha da empregada tá dizendo que é comunista?”. Não sei de onde tirei (risos). E eles tomando sopa, sabe?
Nas faculdades de Letras e Artes Dramáticas foi elaborando melhor a questão política…
Foi na USP, quando estudava Letras e fazia escola de teatro, que fui me politizando. No início da ida de estudante, não era muito consciente. Eu fui aos poucos entendendo por dentro. Vi pessoas que eram contra o diretor acampando na escola, vendo que professores tinham sido caçados, uma professora foi presa e torturada . Foi um processo gradativo de consciência política.
Depois, andava com uma turma de sociologia, éramos louquíssimos, bebíamos absinto. Eu e uma amiga levávamos bilhetes para pessoas escondidas, espalhávamos panfletos.
No Teatro de Arena também deu o clique. Todo aquele trabalho deles maravilhoso, núcleo de cultura, arte, política. Aquilo veio para dentro de mim.
Era ditadura do (Emílio Garrastazu) Médici no Brasil quando fui para Portugal, também sob ditadura, com a (produtora) Ruth Escobar fazer “Missa leiga”. Estava dormindo numa pensão quando dois policiais bateram na porta e perguntaram se eu sabia que distintivo era aquele. Eu disse: “Sim, é do DOPS”. Levaram meu passaporte e disseram que sabia com quem eu andava. Fiquei apavorada. A Ruth resolveu a situação. E falou para não andar sozinha. Sou de uma juventude que andava a pé às três da manhã, tinha pouco dinheiro. Não tinha conexão com a luta armada, mas pensei: escapei!
Soube que vai fazer uma peça do Eduardo Barata após 10 anos afastada dos palcos…
Ele me convidou, mas por enquanto ainda é um projeto. Quero muito voltar ao teatro. Gosto muito de escrever com a Tereza Monteiro, uma professora. Montamos peça sobre a obra do Gil Vicente na Casa da Gávea. “Entre o céu e o inferno”. Estávamos escrevendo uma peça para um amigo, “Ilha dos sonhos”. Eu faria como atriz, mas ele morreu veio a falecer e a gente fechou essa pasta.
Está complicado viver de teatro no Brasil….
Eu já vivi. Mas tenho amigos fazendo peças premiadas que não conseguem pagar as contas.
Há atores, como Marcos Oliveira, o Beiçola de “A grande família”, pedindo emprego publicamente…
Pois é. A gente faz uma vaquinha para a pessoa fazer uma cirurgia, consertar o telhado da casa, pagar o enterro de alguém… Por isso estamos na briga pelos direitos de intérprete. Muitos colegas fizeram coisas na televisão, no cinema, no streaming. Têm direito de receber sobre aquela obra, não é nenhum favor. Temos que ter um sindicato atuante. É ele que pode fazer ter o direito a uma greve e ouvir quem trabalhou uma vida inteira.