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Uma história bonita de uma filha que não mede esforços para tornar menos sofrida a vida da mãe, de 94 anos, com Alzheimer..
Com muita delicadeza e algumas “mentirinhas”, ela conseguiu criar um sistema de acolhimento da mãe que funciona perfeitamente, sem estressar nem uma nem outra.
Com o envelhecimento cada vez mais rápido da população, e o consequente aumento dos casos de demência, esse é um quadro que vai se tornando comum no Brasil.
O caso acima é relatado pela filha, Denise Gouveia Monteiro, num detalhado artigo:
“Fiz ela aceitar a cuidadora disfarçada de mensalista, fui fazendo ela parar de dirigir, comecei a cuidar das contas dela e organizei a medicação,” conta Denise, explicando: “Estas eram as recomendações iniciais do médico. Por termos descoberto no início, conseguimos tempo para gerenciar tudo.”
Leia o relato, publicado por O Globo:
“Em dezembro de 2011, Mamãe foi diagnosticada com Alzheimer. Na época ela estava com 78 anos e eu com 47. Papai, seu grande amor havia falecido em 2008. Dois anos antes teve uma conversa delicada comigo na sala do apartamento deles. Disse que estava preocupado porque se acontecesse algo com ele, não sabia quem cuidaria da Mamãe, pois ela era muito dependente dele. Incomodada, logo respondi que parasse com o assunto e que não se preocupasse, prometi que cuidaria dela.
Uma semana depois, na cozinha, a Mamãe veio exatamente com a mesma conversa. As mesmas palavras. Dizendo também que o papai era muito dependente dela. Dei a mesma resposta tranquilizadora e pedi que parassem com esta preocupação.
Tenho dois irmãos homens mais velhos, mas fui a escolhida. Provavelmente por ser a única mulher. Para geração deles, tal postura era mais orgânica. Porém, passando o desespero turbulento do diagnóstico, meus irmãos me apoiaram e apoiam até hoje.
Mesmo sendo bem próxima de meus pais, quando papai faleceu, praticamente grudei na mamãe. Foi uma perda muito rápida de uma pessoa saudável. Ele agregava a família e foi um período difícil. Dormi por uma semana na cama com a mamãe. Depois passei para o quarto ao lado e dormíamos com as portas abertas.
Ela foi retomando a rotina de atividades comigo ao lado. Ioga, hidroginástica, caminhadas com as amigas no parque e bazar da Igreja. Três meses depois voltei a dormir na minha própria casa de segunda a sexta. Nos finais de semana continuava com ela fazendo alguns programas. O curioso é que ela dizia para as pessoas que eu fui a pessoa que mais sentiu a perda de meu pai porque não a largava mais. Eu preocupada com ela e ela preocupada comigo.
Ocasionalmente conversava sobre morarmos juntas para facilitar nossas vidas. Em 2010 comprei um apartamento maior e mais próximo, com grande estrutura de esportes, lazer e segurança, já com essa intenção. Após o diagnóstico os cuidados redobraram e mudei vários protocolos com cuidado e com algumas mentirinhas para que o aceite fosse natural.
Com isso, fiz ela aceitar a cuidadora disfarçada de mensalista, fui fazendo ela parar de dirigir, comecei a cuidar das contas dela e organizei a medicação. Estas eram as recomendações iniciais do médico. Por termos descoberto no início, conseguimos tempo para gerenciar tudo.
Porém a doença é progressiva e era preciso organizar o futuro. Ela concordou em morar comigo. Para tanto, precisava fazer uma nova reforma no apartamento para as adaptações de mobilidade que viriam pela frente. Assim como, precisava de mais armários para as coisas dela. Preferia me desfazer das minhas coisas do que das dela.
Era importante que ela sentisse que a casa era dela também e que reconhecesse os objetos de sua história. A reforma, que deveria durar três meses, durou seis, e ela participou e opinou em tudo. Neste período, fiquei no apartamento dela. É aí que nossa história de amor aflora. A intensidade do amor sempre existiu, mas agora ele estava sendo exposto.
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Passei a observar e registrar todos os hábitos da mamãe com maior detalhamento, pois queria repetir o formato na nossa nova casa. As preferências de café da manhã, almoço, lanche e jantar. Do tempero a temperatura. Mamãe cozinhava muito bem. Aprendeu com a própria mãe, a avó Lucinda (cozinha portuguesa/mediterrânea) e com a sogra, a avó Olímpia (cozinha paulista/rural). Trocava receitas e as testava com amigas e familiares. Tenho todos os cadernos guardados.
Eu, não cozinhava nada. Tinha trabalhado fora a vida toda. Ainda nova quando a mamãe quis ensinar, recusei. Meio arrogante dizia que não seria dona de casa, típica adolescente. Pois então, mudei. Fui aprender com a mamãe as receitas de que ela mais gostava. Sabia que o tempo estava contra nós. Até hoje tenho limitações culinárias, mas consegui encontrar o meio termo para satisfazê-la.
Além do básico, aprendi receitas como o bacalhau a brás, cuscuz paulista, alcachofra com molho de miolo de pão, um tradicional mousse de morango, pudim de leite condensado e tantas outras delícias que compunham a história de nossa família. Foi uma mudança natural, divertida e muito amorosa porque havia um novo propósito. A valorizei em tudo que podia e ela adorou. Quando se confundia com alguma coisa, dávamos risada.
Nunca contei que tinha Alzheimer porque ela sempre teve muito medo da doença. Quando íamos ao médico, dizia que era o médico da memória em razão do avanço da idade. Ela não tomava “remédios”. Eu dizia que eram apenas “vitaminas” e ela aceitava. Sempre foi muito boazinha em aceitar tudo. Mas este “tudo” sempre foi elaborado com muito cuidado e com algumas mentirinhas.
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Hoje, com 94 anos e bem debilitada pelo Alzheimer e Parkinson, os pratos deliciosos passaram a ser liquidificados porque a dieta é pastosa. Ela continua gostando e comendo tudo. Ainda sorri das minhas brincadeiras e ataques de carinhos, o que acalenta meu coração.”
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