Márcia Lage
50emais
Há filmes que mexem conosco como se estivéssemos em uma terapia de grupo. Nós, solitários e perdidos, sendo profundamente questionados por um colegiado de psiquiatras. Cada um deles representante de uma das inúmeras linhas de investigação do subconsciente pessoal e coletivo criadas desde Freud.
É o que faz A Substância, nos cinemas desde setembro. Um filme de difícil digestão, a começar pelo cartaz que o anuncia nas salas de exibição: as costas magras de uma mulher, cirurgicamente costuradas de alto a baixo, numa imagem que mais expulsa que atrai o cinéfilo delicado, pouco afeito a representações realistas de violência ou terror.
Coralie Fergeat, a pouco conhecida diretora francesa de 47 anos, roteirista de programas de TV e autora de Revenge, filme com o qual se destacou em 2017, cria uma obra-prima de cinema, uma ficção científica baseada na realidade da preconceituosa sociedade de consumo atual.
Com uso de cores fortes, personagens desdenhosos e cenas impiedosas de close e sangue, espirra em nossa cara, a cada frame, o pus mau-cheiroso da nossa cultura vazia.
Tudo começa com uma denúncia de etarismo. Uma figura famosa de TV (Demi Moore) é demitida sumariamente por um diretor grotesco, porque tem 50 anos e já não serve mais para o papel sexy que representa num programa de ginástica.
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Daí vem o desespero para manter a fama, a perda da identidade e a manipulação sem ética dos avanços tecnológicos. Como nesses aplicativos atuais de inteligência artificial que te enredam em golpes e falta de atendimento humano, a atriz é atraída por uma propaganda que vende uma substância capaz de mantê-la jovem, a um preço que ela arrisca pagar. No escuro. Sem consulta médica. Sem registro. Sem nome.
Começa a não-ficção. A abordagem filosófica da sociedade falsa em que nos metemos, onde o que vale não é o que somos, mas o que o mercado deseja de nós com sua avalanche de produtos, suas promessas de riqueza, de poder e fama, enquanto nos sacrificamos na fogueira das vaidades, carne assada para os lobos insaciáveis.
O filme se transforma numa fábula, onde os bichos são os homens e a mulher é um animal exótico a ser caçado e consumido enquanto jovem, alimentada com bajulações, aplausos e promessas de um lugar na calçada da fama. Dá-se o conflito. A jovem odeia a velha, mas ambas são uma só, o uno indivisível da personalidade esfacelada pelo desejo de reconhecimento e aplausos.
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Dizem que muita gente não aguenta ver o desfecho do filme, exageradamente grotesco, onde a personagem sucumbe monstruosa, gritando “ainda sou eu, ainda sou eu”. Não há nenhum eu dentro ou fora dela, apenas um aglomerado de egos retroalimentadores assistindo à decadência coletiva de uma sociedade amoral, hipócrita, banhada em seu próprio sangue de barata resistente.
Veja o trailer:
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