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Ingo Ostrovsky: Medo

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Só depois de terminada a guerra é que os japoneses – e o mundo – ficaram sabendo o que tinha acontecido em Hiroshima e, três dias depois, em Nagasaki. Houve grande destruição, muitas vidas se perderam. O medo, entretanto não estava lá. Veio depois, com a ameaça de que aquilo poderia um dia se repetir

Uns anos atrás o trabalho me levou a estar com Marília Gabriela no Palácio da Alvorada para uma entrevista com o então Presidente José Sarney. O Alvorada é uma residência linda, está longe de ser suntuosa, é acolhedora com uns cantinhos bem aconchegantes. E tem no sub-solo um dos meus impossíveis sonhos de consumo, um cineminha de verdade, para umas 20 e tantas pessoas, com projetor de 35mm, igual aos antigos cinemas do seu bairro.

As entrevistas de Gabi sempre terminavam com um “bate-bola” – ela dizia uma palavra e o entrevistado rebatia com o que lhe vinha à cabeça. Uma constante no bate-bola era a palavra medo.
– Medo, Presidente. Qual o seu medo?
Ele pensou alguns segundos e respondeu.
– Medo de injeção!
– Por que, Presidente?
– Não gosto de nada entrando dentro de mim!

Imagino que o ex-presidente já esteja vacinado – ele tem 90 anos – e me lembrei dessa história vendo as imagens de brasileiros e brasileiras tomando e celebrando essa bendita injeção. Será que alguém teve medo?

Qual medo é maior, o da picada da agulha ou o de ficar doente?

Eu ando com muito medo da doença, não me envergonho de confessar. Converso com pessoas que também estão com medo. Medo de fazer algo errado, de se expor em demasia, de ir ao mercado sem necessidade, de esquecer de lavar as mãos. Já tomei a primeira dose da Coronavac e sigo com medo. Será que chego inteiro à data da segunda dose? Semana passada os jornalistas lamentaram a morte de Paulo Stein, conhecido e talentoso narrador esportivo carioca. Ele tinha 72 anos e pegou a Covid 19 dois dias antes de ser vacinado!

Uma das cenas mais marcantes desses últimos dias foi a de um homem vestido de Morte, parado ao lado de um quebra-molas na entrada de uma das cidades turísticas procuradas por paulistas, cariocas e mineiros nesses dias de feriados antecipados. De capa preta, capuz na cabeça, uma máscara de caveira e empunhando uma longa foice, esse brasileiro lembrava a todos os passantes que a pandemia traz consigo o medo de ser alcançado por “ela”.

Será que todo mundo tem medo de morrer? Os jovens e não tão jovens que frequentam as festas proibidas durante a atual quarentena são destemidos? Valentes? Intrépidos?

E nós somos o quê? Fracos? Medrosos? Hoje em dia, diante de uma multidão, ficamos assustados? Pálidos como a morte?

Ao longo da vida a gente vai tomando conhecimento de vários medos. Criança tem medo de escuro, os mais crescidos tem medo de raios e trovões, você certamente conhece alguém que tem medo de avião, eu tenho uma amiga que, por medo, não entra em elevador. Fui casado com uma mulher que tinha medo de altura. Tem até gente que terminou o segundo grau e tem medo de barata!

São medos, digamos, individuais, cada um tem o seu e nem precisa contar prá ninguém. Ter medo é sinal de fraqueza, né mesmo? Nesta pandemia a coisa se inverteu: o medo é geral, coletivo.

Quase 40 anos atrás eu fui a Hiroshima, no Japão, fazer um documentário sobre a primeira cidade atacada com uma bomba atômica. Falei com sobreviventes e, para meu espanto, descobri que no momento da explosão eles não sabiam do que se tratava, acreditavam que o problema estava no depósito de gás. Artefatos nucleares eram secretos, não é como hoje, quando sabemos o tamanho dos arsenais das potências que tem a bomba. A explosão liberou uma incrível quantidade de calor, que incendiou tudo, pois quase todas as casas eram de madeira. Os que sobreviveram correram a se jogar no rio que corta Hiroshima na tentativa de fugir do calor.

Só depois de terminada a guerra é que os japoneses – e o mundo – ficaram sabendo o que tinha acontecido em Hiroshima e, três dias depois, em Nagasaki. Houve grande destruição, muitas vidas se perderam. O medo, entretanto não estava lá. Veio depois, com a ameaça de que aquilo poderia um dia se repetir.

A nossa bomba atômica se chama Coronavirus. Depois de 12 meses já sabemos que o vírus é traiçoeiro, não respeita idade, classe social, nível educacional… Ameaça a todos!

Estamos perto de 4 mil mortos por dia, é um dano irreparável às famílias, aos amigos, colegas e, pensando bem, a toda a sociedade.

Dá medo!

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