Márcia Lage
50emais
Dia destes o Espírito de Minas apareceu para mim. Veio como no poema do quase conterrâneo (alguns anos eu também vivi em Itabira) Carlos Drummond de Andrade, balançando entre o real e o irreal, reavivando em mim ao menos a metade do que fui na nascença e a vida esgarça.
Sou mineira contrariada. Pudesse ter escolhido onde aportar não teria sido nas gerais; acho que nem no Brasil dos dias de hoje. Há sempre uma pedra no nosso caminho. Leva anos para contornar. E quando pensamos que acabou surge um mar de morros à nossa frente. Se os morros desabam, é minério soterrando tudo. O que faz a paisagem gera a desgraça. Isso é Minas.
O fantasma que me visitou era bem de lá, das encostas do Espinhaço, onde as cidadezinhas se abraçam nas beiras de rios ou córregos. Porque tudo o mais é íngreme. Trouxe coisas da terra que meus olhos não desejam e minha boca não recusa: Linguiça caseira, temperada com as mãos da minha avó, com certeza. Queijo fresco, salgado de véspera pelo meu avô. E goiabada cascão, feita por alguma tia no tacho de cobre da cozinha da fazenda, sem dúvida alguma.
Assim como o poeta, eu também já tive ouro, tive gado, tive fazenda, e voltou tudo junto no embornal da assombração, que abriu uma garrafa de cachaça e uma lata de carne conservada em gordura, sob a qual dormia o tutano que me criou. Mesmo dando voltas ao mundo para deixar de ser roceira, a roça me habita como lugar protegido de desassossegos, onde a terra é mãe e o céu é pai. Crescer nesses conceitos de “em si plantando, tudo dá” e “Deus ajuda quem cedo labuta” dá uma coragem danada para enfrentar a vida.
Pois então…O Espírito de Minas era de uma prima cujo tempo revelou, no rosto já sexagenário, o retrato fiel da minha avó. E como a ser doida Minas não me inclina, contive o ímpeto de me deitar em seu colo e pedir uma sopa de banana verde, uns bolinhos de raspa de queijo ou um pedaço de requeijão derretido na panela de ferro. Receitas enterradas com minha avó, cujo amor se dava às colheradas. Amor saboroso, temperado para fazer crescer, de dentro para fora, de fora para dentro.
A alma mineira (que não era penada, senão alegre feito um passarinho) desembalou as oferendas dos papéis que continham notícias frescas sobre os amigos da infância e os parentes, bebericando em dedal a pinga de alambique, um trago e um naco de linguiça apimentada. Só um primo morreu de câncer galopante; outro ficou milionário não se sabe como; a maioria seguiu caminho regular de casamento e filhos. Esses debandaram para os confins do globo, entediados com a cidadezinha, que parou no tempo e de lá não arreda pé: Casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomar, amor, cantar. Os burros continuam a trotar sem pressa, os homens andam devagar, devagar as janelas espiam as ruas.
Todo mundo fala de todo mundo, há famílias inimigas desde o tempo dos tataravós; de vez em quando alguém morre de morte matada; de quando em vez alguém se mata, por falta de lazer ou do que fazer. Minha geração já está com as faces amarrotadas e desniveladas de nossos pais e avós, carimbo da velhice e das escolhas pouco sortidas de um DNA que se repete na mistura das famílias daquele lugar. Há crianças lindas e livres a crescer para nos substituir no futuro, quando nosso ofício de viver pedir arrego.
Isso vai demorar, ao que parece. O encontro com o Espírito de Minas revelou que envelhecemos com a cara dos nossos antepassados, mas também com outras boas características deles, como ótima memória, boa disposição e nenhuma doença grave. Uma infância de sol e torresmo faz bem à saúde, o Dráuzio Varela que pesquise. Se o DNA
caseiro não falhar, passaremos dos 90. Na festa dos 70 de qualquer um de nós ainda vai dar para juntar uma boa galera. As baixas foram pouquíssimas até agora.
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