Márcia Lage
50emais
Aos 67 anos ganhei uma filha. Uma menina emburrada, desconfiada de afetos e de carinhos. Passa mais tempo dormindo que acordada. Fala quase nada: Hum-hum, para dizer que está bem, que aceita alguma coisa, que vai deixar-se banhar. Não para responder a qualquer pergunta: Quer uma fruta!? Não. Quer ver um filme? Não. Quer sair para tomar um sorvete, um Açaí, espairecer um pouco? Não.
Por trás desse gênio birrento a menina tem medo de muitas coisas. De adoecer, de sentir frio, de ser atropelada, de cair, de morrer. É tanto medo que ela passa os dias encafifada, sentada numa cadeira de praia, a torcer as mãos. Pensando em que? Pergunto. Em nada, responde. Fico na dúvida se realmente não pensa, pois se a observo vejo seu ventre se contraindo involuntariamente, como um gato quando quer expelir sua bola de pelo.
Há um incômodo dentro dela, um contrafeito que ela deseja expulsar. O ar chega até à garganta e lhe aperta o pescoço. Respira mal. Respira como quem se afoga. Inspira fundo, aconselho. Tenta, mas o ar não faz o caminho inteiro da boca até ao baixo-ventre. Engarrafa entre o peito e o pulmão, milhares de histórias entupindo as vias, desejando chegar a um destino que o trânsito caótico de lembranças não desafoga.
Estaciona no sinal vermelho. Ouço as buzinas da sua pressa, deseja avançar o sinal, encontrar estrada livre e correr. Não pode. As pernas não lhe obedecem, travam-lhe a fuga. Só as mãos se contorcem, buscando solução. Os olhos secos perdidos num ponto à frente, desistidos de alcançá-lo, por longe demais ou impossível.
Leia também: Crônica de uma filha que perdeu a mãe para o Mal de Alzheimer
Às vezes minha menininha se abandona tanto à tristeza e à falta de desejos que dá vontade de niná-la com uma cantiga alegre e cheia de esperança. Ela me olha como se dissesse: Não perca seu tempo com esse teatrinho. Não acredito em nada nem em ninguém. Não confio. Não me entrego. Não vou!
Fico calada ao seu lado, olhando-a dormir encasulada em cobertores, na longa metamorfose que a fará voar. Enternecida, dou-lhe banho, leite quente, chá de erva cidreira, doces. Repito, pacientemente, tudo o que ela fez por mim quando era minha mãe.
Leia também de Márcia Lage:
A polêmica em torno da depressão das mulheres de Belo Horizonte
Em me instalei numa fazenda, sem TV ou internet: fugi do mundo plantando árvores
Eu prefiro viajar sozinha. É difícil conciliar interesses quando se viaja em dois ou três