Déa Januzzi
Nossos corações se cruzaram quase quatro anos depois de tudo. E ela me contou que a cura de uma dor que não tem nome veio através do barro. O mesmo barro que deixou cicatrizes profundas na alma dela. Estou falando de Sonia Imanishi, hoje com 54 anos, e que depois de tudo voltou para Minas, mais exatamente em Brumadinho, onde vive com o marido Geraldo Faraci. Entre ser vítima ou sobrevivente, essa mãe escolheu a última. Não partiu para o caminho de vítima nem de tentar culpar alguém por uma tragédia que poderia ter arruinado a sua vida por completo.
Ela é mãe de Yumi, a jovem de 18 anos que foi soterrada junto com mais dois colegas do curso de Arquitetura naquele revéillon de 2010 para 2011, em Angra dos Reis, Rio de Janeiro.
Os pais de Yumi eram donos da Pousada Sankay, na Enseada do Bananal, Ilha Grande, um lugar paradisíaco, que escolheram para ter qualidade de vida e criar a filha junto à natureza. Até que o pesadelo veio na virada do ano de 2010, às quatro da manhã, depois das comemorações de ano-novo.
Até hoje, Sonia se belisca para ver se não está dormindo. Como se tivessem tirado o seu chão – e ela continuasse a flutuar sem bordas para segurar. Imagine perder ao mesmo tempo casa, trabalho e a única filha.
Conhecer Sônia Imanish é um presente para qualquer mãe. Com a simplicidade zen de seus antepassados, ela teve que refazer a vida, restaurando tudo, com paciência, aceitação e a força dos guerreiros samurais. Sônia é carioca, nasceu no Rio de Janeiro, mas é filha de pais japoneses que vieram para o Brasil no fim dos anos 1950. Até os 10 morou no Rio, onde os pais trabalhavam em uma indústria japonesa, depois vieram para Minas. Ela se confessa carioca, mineira e japonesa.
Desde 2012, o casal mora num condomínio fechado na Região de Brumadinho, onde está o ateliê de Sônia e o jardim em homenagem à filha, onde os girassóis estão sempre virados para a luz para lembrar a passagem rápida e ensolarada de Yumi entre nós. A casa tem todos os caquinhos da pousada, fica no meio do mato, embaixo do topo do mundo, onde os pais jogaram parte das cinzas da filha que, por incrível que pareça, já havia expressado o desejo de ser cremada.
Foi justamente a urna com as cinzas de Yumi que fizeram de Sônia uma ceramista diferenciada. A ideia era aprender a fazer o mais belo pote em cerâmica para colocar as cinzas da filha. O antigo pote de porcelana nunca fora do agrado de Sonia, até que descobriu uma vizinha famosa, a ceramista Erli Fantini, com o seu gigantesco forno a lenha para queima do barro. Ficou apaixonada com o fogo, o barro e as pessoas em volta da queima. Descobriu que “o barro tem alma”.
Com o barro que soterrou os seus sonhos, ela reencontrou a filha. Cada peça de Sônia é dedicada a Yumi, pois as duas amavam arte. Viajavam, visitavam museus, pintavam juntas, seja em paredes, desenhos na pousada, na decoração e até nos barcos.
Na casa de Sônia, as lembranças da filha estão por toda a parte. Afinal em sua meteórica passagem pela Terra, Yumi falava cinco idiomas, tocava violão, teclado, compunha e reunia títulos como o de ser a segunda mulher a conquistar a faixa preta na arte marcial kobu-dô.
Se ela sente saudade de Yumi? Todos os dias, mas transformou a dor em arte. Pegou o barro que lhe tomou tudo e o transmutou em beleza.
Hoje, ela respira a arte da cerâmica. Acorda às quatro da manhã para moldar o barro com a dor de perder, mas a felicidade de ter convivido com essa espécie de anjo que só esteve aqui para alegrar as pessoas à sua volta. Enquanto trabalha no barro, Sônia recita uma espécie de mantra: “Farei dos meus olhos os seus olhos e dos seus olhos os meus.”