Déa Januzzi, 50emais
Até gostaria de ter aprendido a bordar, costurar e a ser exímia dona de casa, para passar esta quarentena de um jeito mais suave. Isolada socialmente por causa da Covid-19, os únicos prazeres da minha vida são escrever, caminhar, encontrar os amigos e tomar vinho em companhia deles, degustando conversas longas, trocando ideias e risadas.
A minha geração não quis aprender tarefas domésticas, apesar de não ter me faltado oportunidade. Minha mãe – com o significativo nome de Amélia – fazia crochê e tricô com tamanha competência que as filhas dela têm colchas lindas. A minha geração teve que correr atrás de um lugar no mercado de trabalho, de se posicionar em um mundo masculino fechado. Entrei para a redação de um jornal mineiro, em 1974, depois de me formar na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG.
Não tive tempo nem paciência para aprender a fazer tricô e crochê e, na época, queria ser diferente de mulheres como dona Amélia que ficavam entre quatro paredes, sob as ordens do marido. Mas voltando ao isolamento imposto pelo Coronavírus, hoje me arrependo de não ter habilidades domésticas. Passada essa pandemia mundial, nada será como antes, graças aos sinais do Universo. Acredito que a simplicidade dará o tom de um mundo menos competitivo, hipócrita e desajustado, onde o lucro é a moeda corrente.
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Se sobreviver a essa pandemia tenho certeza de que não haverá mais lugar para o consumo desenfreado, para a exibição de luxo e riqueza, para a ganância. Não haverá lugar nas ruas e avenidas para tantos carros. O isolamento obrigatório está provando que até a natureza agradece a quarentena, o sumiço da multidão de pessoas. Devagar, até os bichos estão retornando aos seus habitats naturais. Sem a presença predadora do ser humano, a natureza reina absoluta, senhora de si – e se recupera dos desastres ambientais, das serras elétricas assassinas que derrubam árvores e agridem, com violência, o Planeta.
Vivi um tempo na Serra do Cipó, a 100 quilômetros de BH, essa última cidade onde nasci, cresci, tive meus relacionamentos, estudei, vivi um emprego formal durante 39 anos, um único filho e projetos e sonhos de uma vida alternativa. Sonhei até com um lugar para passar a velhice com amigos, que teria o sugestivo nome de Aldeia da Sabedoria, mas não deu certo. Tentei a Serra do Cipó, considerada um paraíso pelos turistas – e apesar de ainda ser um lugar lindo, o ser humano me fez desistir de lá, pois estava exterminando com os rios, jogando bichos mortos, fraldas descartáveis, garrafas de plástico e tudo o que produz em excesso. Não suportei os incêndios nos lotes, nas flores, capins e cipós do Cerrado. O fogo lambendo a Serra do Espinhaço. Não suportei os beija-flores voando sem rumo por causa do fogo.
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Voltei para BH e aqui estou confinada em um apartamento alugado de dois quartos, sem ver a Lua e as estrelas como costumava fazer na Serra do Cipó. Aqui, onde moro, a janela de um apartamento dá para a outra janela do prédio vizinho. Você escuta tudo o que eles falam, quando arrastam móveis, quando disparam a descarga do vaso sanitário, tomam banho – e brigam uns com os outros.
Resta-me, então, escrever, o que é vital para mim. Quando escrevo, liberto os pássaros aprisionados dentro de mim. Quando escrevo, posso soltar labaredas, incendiar a minha alma, sem causar estrago a ninguém e a lugar algum. Quando escrevo, faço faxina nos meus pensamentos, limpo as quinas do meu coração. Quando escrevo posso dizer que a natureza é o meu Deus, e que as florestas são templos do meu ser. Quando escrevo, rezo sem professar nenhuma religião, me abasteço, me embriago de sentimentos profundos, dou vazão aos meus oceanos internos. Quando escrevo, bordo e faço crochê com as palavras. Teço o melhor de mim. Voo alto, sem alçapões, gaiolas, sem correntes, sem a hipocrisia e a soberba de um mundo velho que está com os seus dias contados. Espero ainda ter tempo para viver nesse novo mundo, mais simples, ameno e generoso. Amém!
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