Elza Cataldo – 50emais
Chica da, Chica da, Chica da, Chica da Silva. Umas das raras mulheres históricas mais conhecida do que o homem com quem se relacionou, cuja referência na historiografia está associada à sua função de contratador – aquele que tinha o direito de explorar os diamantes concedido pela Coroa. Por outro lado, Chica ficou popularmente conhecida como poderosa, abusada e excessivamente erotizada principalmente pela força da televisão e do cinema. Ela foi protagonista de novela e filme. Na vida real, Chica viveu de 1732 a 1796. A música tema do filme, evocando seu nome, ainda ecoa na nossa memória.
O filme foi dirigido por Cacá Diegues, a música é uma composição de Jorge Ben Jor e Chica foi encarnada pela atriz Zezé Mota em uma atuação inesquecível. A novela dirigida por Walter Avancini traz uma jovem e bela Chica, interpretada pela atriz Taís Araújo, de forma bem apimentada e distante da realidade do século XVIII, conforme apontou enfaticamente a historiadora Júnia Ferreira Furtado que escreveu uma alentada biografia de Chica.
Veja o trailer do filme Chica da Silva:
Entretanto, poucos conhecem outras facetas da famosa negra de Diamantina: mãe dedicada de quatorze filhos, extremamente atenta aos seus destinos e, principalmente, preocupada com a educação das filhas. Sim, das suas meninas. O que era muito raro no século XVIII, quando a educação das mulheres se resumia a prendas domésticas e preparação para o casamento. Pasme! Chica colocou suas filhas para aprender a ler e a escrever em um recolhimento católico feminino, atualmente conhecido como Convento de Macaúbas, localizado em Santa Luzia, Minas Gerais.
E aqui não posso deixar de fazer um desvio para contar um pouco a respeito dessa linda edificação barroca, encravada em uma paisagem ainda bucólica, mantida de pé, literalmente, por bravas freiras do passado e do presente.
Durante o período de preparação do filme Vinho de Rosas, frequentei durante quatro anos (ah! como é longa a preparação de um filme) o antigo Recolhimento de Macaúbas, completamente tomada por um misto de reverência e emoção. Lá descobri que Chica da Silva, com o suporte do contratador, havia contribuído para o conjunto do prédio do recolhimento, construindo toda uma ala formada de corredores, celas e uma singela capela.
Conheça um pouco do Mosteiro de Macaúbas nesta reportagem da TV Alterosa, de 2014,durante as comemorações dos 300 anos da imensa construção:
Chica – codinome “A que manda” – mandou construir também uma casa contigua ao recolhimento para que pudesse se hospedar quando e por quanto tempo quisesse ao visitar suas filhas. Durante essas visitas ela organizava festas, procissões e representações teatrais. Chica gostava de teatro, tanto que lhe é atribuída também a construção de um teatrinho dentro das suas propriedades junto com o contratador. Gostava de se vestir com luxo por gosto próprio e para se fazer respeitar na conservadora sociedade mineira, principalmente entre as famílias tradicionais.
Quando as regras do recolhimento ficaram mais rígidas e as autoridades católicas quiseram impedi-la de visitar suas filhas, Chica, em uma atitude impetuosa e rebelde, retirou todas elas do estabelecimento causando danos financeiros às recolhidas e aos seus padres confessores. Acredito que, diante da consequência, eles tenham tido uma pitada de arrependimento pelo rigor dos novos regulamentos adotados.
ma das filhas de Chica que estudaram em Macaúbas foi Quitéria Rita, personagem do filme Vinho de Rosas. Foi com ela que Joaquina, filha de Tiradentes e protagonista do filme, teria chegado ao recolhimento por força da ficção. Como o convento é atualmente um local de vida religiosa contemplativa, acabei não filmando lá. Mas o vinho de rosas que até hoje é preparado em Macaúbas, pelas irmãs devotas de Nossa Senhora da Conceição, foi a inspiração para o título do filme.
Francisca da Silva de Oliveira foi comprada e alforriada pelo contratador João Fernandes de Oliveira. Para além das lendas que circulam, parece que realmente ele se apaixonou por ela e lhe proporcionou uma vida de abundância.
Quando João Fernandes viajou para Portugal, Chica organizou a ida dos filhos varões para estudar em Lisboa. Alguns chegaram a ocupar postos importantes na administração do Reino. Apesar da promessa, o antigo contratador nunca mais colocou os pés no Brasil. Teria se casado com uma mulher portuguesa da sua “estirpe”, para suposto alívio dos seus.
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Apesar da camada de sexualidade exuberante encobrindo quase toda a personalidade de Chica, acho importante que ela tenha ficado para a história como uma mulher forte e empoderada, para usar um termo atual. Dessa forma, ocupa um lugar ímpar na galeria de mulheres negras entre as suas contemporâneas.
Se a ficção a tratou como um mito sexual que nada ou quase nada reflete o seu corpo real modificado pela maternidade recorrente e que não encontra reflexo no espelho feminino do século XVIII, acredito, por outro lado, que ela tenha desempenhado uma função importante ao lhe dar.
A dramaturgia trabalha com outra noção espacial e de corporalidade. Mas pode, mesmo assim, despertar o interesse por fatos e personagens que encontram precisões e contornos mais objetivos na pesquisa histórica.
Enquanto cineasta focada em filmes do gênero histórico, procuro me aproximar de forma cuidadosa da historiografia, mas me deixo envolver também pelos encantos da ficção. Chica da Silva é uma personagem fascinante quer seja tratada com os rigores das fontes históricas ou com os atraentes recursos da ficção. São personagens diferentes, que muitas vezes se opõem, outras se encontram em algum detalhe, mas sempre contribuem para que sua memória seja perpetuada. Estou entre aquelas pessoas que se interessam por ambas as representações.
Chica da Silva, ancestral singular entre as mulheres negras, inspira suas filhas até hoje.
Ouça a gravação do texto por Elza Cataldo: