Ingo Ostrovsky
50emais
Como será que os índios reagem a um eclipse do sol?
Me fiz esta pergunta quase 50 anos atrás enquanto procurava uma maneira de driblar a censura do então governo militar a qualquer assunto relativo às questões indígenas. Naquela época, década de 70, havia rumores de verdadeiros massacres contra os primeiros habitantes do Brasil. Junto com outros jornalistas batalhávamos acesso ao Parque Nacional do Xingú, área controlada pelos governantes de então, pouco afeitos ao diálogo e montados numa alentada estrutura de controle da imprensa.
Os militares aceitaram o argumento da proximidade de um eclipse total do sol e autorizaram a viagem, que só poderia ser feita em aviões da FAB. Talvez eles também estivessem curiosos. Eu era repórter de televisão e viajei ao Xingu com mais dois colegas.
Para os membros da tribo Yawalápiti, que nos receberam no Parque, o sol é um deus poderoso e o eclipse nada mais seria do que um ataque coordenado de grandes inimigos contra seu poder. Foi o então jovem Aritana quem me explicou isso. Aritana já falava português e estava sendo preparado para ser o líder daquela nação, o que ele efetivamente se tornou por várias décadas até morrer, vitima da Covid 19, em 2020.
Para vivenciar o eclipse, os índios, reunidos no centro da aldeia, se prepararam para a guerra, pintando o corpo de preto e vermelho. Fui informado que nenhuma parte do corpo poderia ficar descoberta. Só assim os guerreiros estariam protegidos. Cantando e dançando a tribo esperou aquela noite fora de hora.
Foi graças a esse esforço que o sol voltou a brilhar depois de ser encoberto por alguns minutos pela sombra da lua. Para os Yawalápiti foi uma luta de vida ou morte. O sol, apesar de poderoso, foi ferido nesse combate. As gotas de sangue caíram sobre a floresta e só não causaram mal aos guerreiros por causa da tinta de urucum espalhada pelos corpos. Nós, os brancos que não estávamos pintados, veríamos pequenas pintas e manchas surgirem na nossa pele a partir daquele momento. “As gotas de sangue do sol”.
Estávamos no dia 24 de dezembro. Cansados da batalha os índios ainda tiveram força, para, solidários, caçar um cervo de maneira que nós, os brancos, pudéssemos celebrar a noite de Natal. Assada na fogueira, a carne foi saboreada por todos. Os deuses daquela noite agradeceram. Brancos e índios celebraram juntos o nascimento e a vitória.
Na manhã seguinte ainda tivemos tempo de jogar uma pelada com os Yawalápiti.
Me lembrei dessa história vendo as fotos da grande exposição sobre a Amazônia, inaugurada na Europa pelo fotógrafo Sebastião Salgado. Nas palavras do artista “é o paraíso na terra”. São os índios os guardiões desse paraíso.
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