Pedro Augusto L. Costa
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Sempre detestei cachorros. Não sei se sofro de algum trauma depois de ter sido mordido, pulado muro quando um pastor alemão quase me esquartejou, ou mesmo ver meu sofá novo comprado a prestações ficar em frangalhos. Cachorros também comem bíblias, fotos de casamento, pés de mesas, tapetes persas e, por onde andam, deixam marcas: babas, cocô, xixi, pêlos – é uma tragédia diária. Era assim que eu pensava.
Até que conheci Jenny, há dez anos. Linda de morrer, uma pequena deusa canina que incorporou-se à minha família americana, Jenny Mary (sim, tem segundo nome) pede para fazer suas necessidades no jardim, dorme boa parte do dia (na nossa cama), vê a vida com sabedoria Zen e, acima de tudo, não late.
Bassenges, a raça africana, são tão autolimpantes como os gatos, e sem miar. Daqui sua aversão atávica a água quente, fria ou morna no banho. Preferem fazer o serviço por si mesmo.
Jenny está super presente em nossas vidas. Para nossas filhas, é um remédio para os traumas da infância, que no nosso tempo eram nada menos que acidentes de percurso: quedas, brigas com namorados, notas baixas na escola.
Para minha mulher, é uma interlocutora: a patroa conversa animados papos com a cachorrinha, pedindo inclusive conselhos.
Para mim, Jenny é uma companhia agradabilíssima. Principalmente porque é silenciosa e não tem ego, pelo menos aparentemente. Como Cordélia, a filha do Rei Lear na tragédia de Shakespeare, sua função é amar. Em silêncio.
Dizem que os cães não nos amam: apenas olham a gente como ligação entre a fome e uma tigela cheia de comida. Não é o caso da Jenny. Temos uma relação de afeto. Quando me sento no sofá para ler, de preferência em frente à lareira, ela vem devagarzinho, toda humilde, como se pedisse para se aproximar, e encostar na minha perna, onde consegue se retorcer até achar o melhor lugar para descansar deste mundo cruel.
Outro dia fiquei sabendo que Ulisses, de Homero, da tragédia grega, recusou todas as belezas do mundo – inclusive a vida eterna -, para voltar a Ítaca, onde nasceu, o lugar onde tinha paz. O quentinho do meu corpo é a Ítaca para a Jenny. Ficamos nós dois lá, em silêncio, um olhando para o outro, como se a vida no mundo dependesse de só nós dois.
Estou falando desta relação de amizade e respeito porque cada vez presto mais atenção na relação entre seres humanos e cachorros. Hoje todo mundo tem um “pet” como se diz aqui, mas uma quantidade enorme de gente que realmente precisa de cachorros: cegos, cadeirantes, diabéticos, epiléticos, gente que tem variações corporais que podem levar a alguma lesão, autistas e ex-soldados com síndromes traumáticas – utilizam os chamados “service dogs”, treinados a um bom preço (alguns até 100 mil dólares) para detectar problemas, guardar ou socorrer o dono nas mais diversas situações.
O que me veio à cabeça é que todos nós – gente e cachorros – precisamos, no fundo, é do amor de alguém que cuide de nós, e a recíproca é verdadeira. Estou reparando que a solução para tudo, ou quase tudo, é socializar, conversar, trocar experiências. Desabafar, como é próprio do ser humano.
Cães que dormem ao seu lado, que te acompanham nos passeios no parque, que carregam consigo aquele amor incondicional, aqueles olhinhos de quem está lá só para te fazer feliz, talvez sejam a solução para quem sai com a metralhadora e mata dezessete pessoas, como na semana passada aqui nos Estados Unidos.
Ou mesmo para as guerras e desastres naturais que, perplexos, assistimos diariamente. Eles (ou elas) nos reconfortam, trazem calor e companhia. Estão para o que der e vier.
A única coisa que pedem é um pouquinho de comida e água fresca, todos os dias.
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