Márcia Lage
50emais
O que complica nossa vida é o hiato existente entre a modernidade e o atraso. A burocracia, por exemplo. Ela insiste em continuar torrando nossa paciência, quando os avanços tecnológicos já poderiam ter acabado com este transtorno há anos.
É inacreditável que ainda tenhamos cartórios nos dias atuais. Mais inacreditável ainda são os preços que eles cobram por serviços notoriamente inconsistentes e até ilegais, já que desde Sarney a lei da desburocratização acabou com um monte de exigências.
Mas, num país onde todo mundo é suspeito, os cartórios continuam dificultando o mais que podem para legalizar qualquer documentação.
Você mostra sua cara, sua carteira de identidade, assina na frente do tabelião e ele atesta que ok, você é você mesmo.
Porém, depois de um mês você deixa de existir.
Certidões de casamento, de nascimento e óbito perdem a validade.
E se você está fazendo algo que os próprios cartórios arrastam para a eternidade, tem que provar novamente que continua vivo, morto ou casado.
Como se um divórcio corresse no prazo de trinta dias, quem nasceu pode ter morte súbita frequentemente e quem morreu ressuscita mais que Lázaro.
O mais moderno de tudo é a assinatura digital, que é feita no site do governo, onde finalmente todos os serviços se encontram.
Mas há empresas que enviam documentos que só podem ser assinados por um site particular e pago, enquanto os cartórios exigem a assinatura registrada no site deles, o e-notariado.
Você entra no site e ele apenas te mostra qual cartório tem o serviço no seu estado e município, e você tem que agendar por telefone e depois voltar para criar a assinatura. Haja paciência.
Estou passando por essas e outras e, de vez em quando, fico tão cansada que vou para a cama, recarregar as baterias já viciadas de anos e anos de luta contra a burocracia: na compra e venda de imóveis, na construção de casas, na candidatura a um curso de mestrado, na participação em concursos, na renovação de passaportes, no pedido de visto para viajar para o exterior etc.
A tecnologia, que sabe tudo de nós, poderia nos poupar desses sugadores de energia, se a burocracia, maldita herança portuguesa, não existisse para sustentar cartórios, inventariantes, advogados, contadores, despachantes. Mesmo quando o estado inova, eles resistem.
Alguns Detrans, por exemplo, já implantaram um sistema automático de emplacamento e registro dos carros novos. Custa em média duzentos e dez reais.
Qualquer concessionária pode se cadastrar para prestar o serviço, mas não se cadastram.
Querem sustentar despachantes que chegam a cobrar até três mil reais para fazerem o que o computador já faz.
Pior, além de extorquirem o comprador com custos mega faturados, tomam o tempo dele com a necessidade de uma procuração feita em cartório, bem como cópia autenticada da carteira de identidade, registro do carro no Denatran e a nota fiscal eletrônica. É de desesperar.
Depois ainda tem os custos do Sedex (60 reais no mínimo), se o carro foi adquirido em outra cidade.
Assim, de burocracia em burocracia a galinha dos ovos de ouro enche o papo e o cidadão brasileiro enche o saco.
Para esvaziá-lo, só a morte, suponho.
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