Márcia Lage
50emais
Passei o feriado de Finados tentando ressuscitar um celular, afogado no mar no último dia de outubro.
Não há morte que nos afeta tanto quanto essa: a de um mísero aparelho, que nos enredou de tal maneira, que não podemos mais viver sem ele. Não por mais de dois dias.
Enquanto estava na praia, nem liguei. Tinha outras pessoas registrando as férias e mantendo os seguidores informados de tudo.
Quando peguei o avião para voltar é que o luto bateu. Tive que refazer o check-in no balcão e, depois de desembarcar, não pude chamar um Uber.
Um taxi do Galeão para o centro do Rio custa 170 reais. 160. 150. 120 no mínimo, regateava a moça do balcão.
Nem morta. Fui atrás do ônibus azul, o que fazia a linha por um quarto do preço. Descobri que a pandemia os tirou de linha e agora que todos os voos foram retirados do Santos Dumont, ninguém pensou em reativá-los.
Descobri o Rio que ninguém conhece em um BRT (um ônibus bem lento que roda em faixa exclusiva) depois outro BRT e mais o metrô. Duas horas depois, estava em casa, na antevéspera do Finados. Sem poder dar notícia aos familiares ou contatar amigos.
No dia 2, tive que esperar até uma da tarde para ir ao Shopping mais próximo tentar comprar um aparelho novo.
Outra descoberta indigesta: tenho um aplicativo da operadora que reduziu meus gastos com telefone e Internet em mais de 500 por cento.
Mas, para assinantes dos malditos planos com fidelidade, os aparelhos custavam três vezes menos. Ou seja: uma jogada espertalhona do capitalismo.
Mesmo assim, optei pela benção de não ter ninguém me ligando da operadora: escolhi um aparelho caro. Muito mais caro do que de fato vale e do que eu posso pagar. Por causa da memória.
Uso o celular para escrever e mais uma infinidade de coisas. Inclusive, de vez em quando, telefonar para alguém.
Para me convencer de que o tal modelo de celular – bem longe de ser o top de linha da marca – era o ideal para o meu caso, o vendedor me ofereceu uma mísera capinha, uma extensão da garantia para mais um ano e o serviço maravilhoso do Nerd da loja, que faria de graça a habilitação do novo aparelho e não me deixaria perder nenhum arquivo.
Levei duas horas ao lado do Nerd, tentando lembrar senhas, recriando outras, a fila de impacientes aumentando atrás de mim.
Quando conseguimos resgatar o que estava nas nuvens, no chip enferrujado e na minha vida sem memória, fui almoçar e deixei o aparelho carregando os arquivos.
De volta, o vendedor insistiu para que eu fizesse um seguro.
“Pelo histórico da senhora, aconselho. Só este ano, foi um roubo e agora esse acidente.
Tivesse seguro, pegava outro igual na hora e patati patatá, tudo em dez vezes no cartão, sem juro algum. Para ficar livre, concordei.
Cheguei em casa exausta e passei o resto do dia a registrar aplicativos de bancos, tirar fotos horríveis para segurança, pedir novas senhas, responder a mensagens, e-mails, resgatar fotos.
Dez vezes sem juros. Tenho histórico. Ainda restam duas parcelas do defunto para pagar.
Espero estar protegida da lei de Murphy, agora que fiz seguro.
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Perfeito, Marcinha, o celular é nosso dono. Sei disto pq perdi o meu e ne senti orfã. Além do quê, estamos na mão do “capetalismo”. …Selvagem.