Márcia Lage
50emais
Gentileza gera gentileza, dizia José Datrino, o profeta do viaduto do gasômetro do Rio de Janeiro. Doido manso, no popular, o morador de rua escrevia mensagens de fé, esperança e não-violência nas pilastras e muros do entorno da rodoviária, e não havia quem lhe jogasse pedras, porque ele era um ser quase bíblico, pacífico, humilde de coração.
Suas frases não são mais vistas nos viadutos do Rio, que passou por varias reformas urbanas desde que o projeto da Gentileza morreu, em 1995. Um ou outro pedaço de suas mensagens, escritas com rigor tipográfico, ainda restam junto à rodoviária. Mas, o que ele pregou, morreu com ele.
Me lembrei do profeta Gentileza por causa da Páscoa, do sacrifício de Jesus por nada, coitado. Pregou união, paz e amor e recebeu de volta a tortura e a pena de morte. E os lugares por onde andou continuam em guerra até hoje. Com a mesma virulência do seu tempo. E até mais.
Não sei se o profeta Gentileza, se ainda vivesse, com seu sorriso carinhoso e seu hábito de distribuir flores aos apressados cariocas rumo ao trabalho, fizesse alguma diferença na violência que tomou a cidade maravilhosa como refém.
De todo modo, no dia a dia, gentileza gera gentileza e é mais do que urgente pôr em prática esse exercício de delicadeza e respeito ao próximo.
Recentemente, quase fui presa por uma policial mal treinada para as funções de agente público que exerce, porque reclamei da não aceitação de um contrato de locação como prova de residência.
Ela foi grosseira comigo e eu reagi no mesmo tom. Deu BO por desacato à autoridade e um sentimento horrível de que nos dias de hoje a gentileza é o único antídoto para a onipotência raivosa de quem detém um mínimo de poder.
Como penitência da Quaresma, decidi que ia exercer a gentileza racionalmente, tentando ver no outro (e também em mim) o animal, disposto a lutar desesperadamente pelo seu direito à vida, ao trabalho, aos degraus que alcançou em sua trajetória e ao desejo inerente de recompensa e felicidade por cada vitória alcançada.
Funciona. Todo mundo quer empatia, escutar cumprimentos de bom dia, boa tarde, por gentileza, faz o favor, obrigada, tom de voz carinhoso. Dá tudo certo.
Mas é um exercício cansativo, porque a energia do outro e do lugar costuma ser tão densa e mal-humorada, tão cheia de má vontade e empáfia, que exige quase um banho de descarrego no final do dia.
Uma coisa que aprendi é que não se pode reclamar da qualidade do serviço de ninguém. Ele já está ali sufocado numa prisão diária de oito horas, em locais públicos insalubres, mal decorados, exercendo uma atividade burocrática e, quem sabe, sendo hostilizado por chefes igualmente insatisfeitos, cada qual tentando sobreviver até que a corda arrebente. Um infeliz à solta é um perigo potencial. Todo cuidado é pouco.
Porém, se houver abuso de poder e de autoridade, denuncie. Não é porque alguém é mal capacitado para o exercício de suas funções públicas que se deve se sujeitar a ele.
O nome da função já diz: Servidor. Ele está ali para nos servir, com salários pagos pelo erário. Então, ele também tem que ser gentil e respeitoso. Só assim alcançaremos um mínimo de civilidade nas relações públicas e privadas.
Que a paz seja cultivada nos corações de todos!
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