O sociólogo Frederico Santana Rick escreveu para o site brasilpopular.com este artigo sobre Elza Soares, mostrando o quanto foi acidentada e dramática, do início ao final, a vida dessa lenda da nossa música.
Na virada do século, no ano 2000, a BBC qualificou Elza Soares de a “Melhor Cantora do Milênio”. Segundo a emissora britânica, ela era “uma mistura explosiva de Tina Turner e Celia Cruz (cantora cubana)”
Apesar das glórias, o sofrimento foi a grande marca da vida da cantora, que morreu em janeiro de 2022, aos 91 anos, de “causas naturais”. Cantou até dois dias antes de partir.
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Elza Soares nasceu em 1930, em uma favela do Rio de Janeiro, mas poderia ter sido em uma favela em qualquer canto do Brasil. Uma família negra de 10 irmãos. Passaram fome, muita fome. Trabalhou desde criança como lavadeira e passava o dia a carregar lata d’água na cabeça -“Descobri que cantava carregando água”.
Aos 12 anos, foi vítima de violência sexual de um homem mais velho amigo de seu pai, que a obrigou a casar para “recuperar sua honra”. Foram longos 10 anos de abuso, violência e alguns filhos, o primeiro aos 13 anos. Seus dois primeiros filhos morreram de fome e desnutrição.
O marido não permitia que trabalhasse fora. O que só foi ocorrer quando ele adoeceu e, para que não morressem todos de fome, ela se tornou operária de uma fábrica de sabão, e trabalhadora de um manicômio. Nesse período, aguardava que todos os demais funcionários fossem embora, para que pudesse pegar escondido alimentos do refeitório e levar para casa. Trabalhou ainda como faxineira e empregada doméstica. Quando o marido se recuperou, obrigou-a a se demitir e voltou a mantê-la em casa.
Após a morte do marido, incentivada pela família que a considerava uma boa cantora, se apresentou no programa de calouros de Ary Barroso, em 1953. Sem roupas para ocasião, e pesando pouco mais de 30 quilos, vestiu um vestido e sapatos da mãe, muito maiores, repletos de alfinetes. Ao entrar no palco, as gargalhadas foram enormes. Perguntada por Ary de onde tinha saído, respondeu “do planeta fome”. Vestido e resposta que inspirariam seu álbum e visual da turnê de 2019. Cantou o samba “Lama”. Foi aplaudida de pé e ganhou nota máxima.
Ainda assim, seguiu sem conseguir viver da música por mais alguns anos. Chegou a participar de uma seleção em uma orquestra e, com eles, cantava em alguns shows, festas e clubes. Porém, muitas vezes era impedida de se apresentar, porque os clubes não admitiam cantoras negras no palco.
Em 1958, levada por um empresário para a Argentina, foi vítima de um calote, quando o homem a deixou ali, sem recursos para retornar ao Brasil. Foi necessário um ano trabalhando no país vizinho para juntar o dinheiro para a volta. Nesse período, perdeu seu pai e não teve como ir ao enterro.
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Em 1960, ganhou um concurso da rádio e, com a vitória, um contrato para cantar semanalmente. Teve presença na TV, e sua primeira experiência fora do país, percorrendo países da América do Sul, EUA e Europa.
Seu primeiro contrato com uma grande gravadora, a Odeon, resultou em um enorme sucesso, “Se acaso você chegasse”. Muitas outras canções seguiram fazendo sucesso, até que, com a relação com Garrincha, que a imprensa e a sociedade não aceitavam, e o golpe militar de 1964, foi perdendo espaço. Era chamada de bruxa.
Com outros artistas gravou uma música em defesa de João Goulart. Sua relação com Juscelino Kubistchek também era incômoda para a ditadura – “Minha voz uso para dizer o que se cala”.
Teve sua casa invadida logo nos primeiros meses do regime militar. Se seguiram muitos atentados, cartas de ameaça, agressões, e impedimentos para que participasse de shows. Foram para o exílio na Itália, onde permaneceu até início dos anos 1970.
Em 1972, teve que ameaçar se retirar do contrato da Odeon, para que publicassem seu novo álbum “Sangue, suor e raça”. A gravadora se recusava a colocar na capa Roberto Ribeiro, seu parceiro naquele álbum, alegando que ele era “nego, feio e sujo”. O álbum saiu e fez grande sucesso.
Nos anos 1980, as gravadoras, todas grandes filiais de multinacionais, buscavam músicas mais palatáveis aos gostos internacionais, e retiraram o espaço de sambistas, que passaram a aparecer apenas no carnaval. Elza, se recusando a se adaptar ao gosto das gravadoras, caiu no ostracismo “Gosto de cantar bem brasileiro, sem sotaque estrangeiro”.
Voltou a se reinventar nos anos 1990 e 2000, como já havia feito ao longo da carreira, quando transitava por todos os estilos musicais: samba, samba-canção, bossa, rock, rap e música eletrônica – “Sou negra, índia, sou samba, jazz, blues, bossa, rock, punk, soul, rapper, sou claro, sou escuro, sagrado, sou profano, bendita, maldita, sou tudo, sou nada”.
Seu reconhecimento, que já era enorme, cresceu ainda mais. Em 2000, ganhou o título de melhor cantora do milênio. Não por um acaso, Elza é quem abre os Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro, interpretando o Hino Nacional.
Já aos 80 anos, torna a se reinventar, e seus álbuns estão entre os mais vendidos e aclamados, como Do cóccix até o pescoço (2002), A mulher do fim do mundo (2015), Deus é mulher (2018), Planeta Fome (2019) e No Tempo da Intolerância (2023).
Morreu em 20 de janeiro de 2022, aos 91 anos. Cantou até dois dias antes da morte. Se tornou imortal da Academia Brasileira de Cultura. Ganhou títulos e prêmios, incluindo o de doutora honoris causa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o qual dedicou às mulheres negras do Brasil – “Eu acho que a mulher do fim do mundo é aquela que busca, é aquela que grita, que reivindica, que sempre fica de pé”.
Elza Soares é a voz negra da música preta brasileira, é militante e protagonista do Brasil popular. Apesar das tentativas constantes de apagá-la, nunca a conseguiram dobrar ou silenciar.
Elza é parte da nossa identidade nacional. Sua carreira foi versátil, como deve ser versátil a luta popular, se adaptando a cada contexto e evoluindo com o tempo.
Ao longo de toda sua história, construiu parcerias diversas com músicos de diferentes estilos e gerações, estabelecendo pontes que produziram preciosidades da música brasileira, tendo feito trabalhos com Agnes Nunes, BaianaSystem, Bnegão, Caetano Veloso, Caramelows, Carlinhos Brown, Cazuza, Chico Buarque, Flávio Renegado, Fred Zero Quatro, Gaby Amarantos, Gal Costa, George Israel, Huaska, Jorge Aragão, Jorge Ben Jor, José Miguel Wisnik, Liniker, Lobão, Marcelo D2, Muralha, Pitty, Rebecca, Romulo Fróes, Titãs, Zé Kéti, Zeca Pagodinho e tantas e tantos outros – “Mil nações moldaram minha cara / minha voz uso pra dizer o que se cala / O meu país é meu lugar de fala”.
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Foi vítima de violência doméstica em muitos momentos de sua vida, e como é comum, apontada como culpada. O combate ao racismo, o feminismo e seu compromisso com um Brasil para os brasileiros, está presente em todos os seus 33 álbuns. Sua voz singular e militante nunca deixou de estar a serviço do povo trabalhador ao longo de sua longa carreira – “Artista negra é artista trabalhadora”.
Seu corpo negro, carregador de lata d’água na cabeça e submetido ao trabalho doméstico, buscaram adestrar, seja como lavadeira, seja como artista, mas ela nunca permitiu. Ao contrário, sempre se mostrou vigorosa, transcendente, força e poder de mulher, negra e operária. Superou o estigma de “mulata assanhada”, pela força de mulher negra, pela denúncia e a busca constante por transformar o Brasil por meio da música – “A agressividade da minha voz é política, é de incômodo, de protesto”.
Sua coragem está expressa em cada uma de suas músicas. Elza foi mais que intérprete musical, foi intérprete e construtora do Brasil. Inteligência musical marcada pela raça, pelo gênero e pela geração que lutou contra a ditadura. Passou de vilã a referência – “Dizem que sou revoltada. Sou uma operária da música, e que operário que não se revolta?”.
Incomodou a sociedade brasileira, desde a sua primeira aparição. Poderia ter se curvado, mas não se curvou. Rompeu com padrões. Foi para cima quando lhe queriam dócil. No auge dos ataques pelo seu relacionamento com Garrincha, lançou Eu sou a outra, que enfureceu a imprensa e a burguesia brasileira – “Quem me condena / Como se condena uma mulher perdida / Só me vê na vida dele / Mas não vê na minha vida”). Elza nunca deixou que a colocassem no lugar de mulher de ninguém.
Afinada com o movimento negro, foi a mulher do fim do mundo. Declarou que “Deus é mulher“. Sempre trazendo a tradição e a inovação, associando sua vida com a arte, sua história com a história de todo um povo que sofre e luta, que samba e canta. Passou por todas as mazelas que uma mulher negra passa no Brasil, transformando perdas (entre elas, a de quatro dos seus oito filhos), em projeto de país. Seu frescor é inspiração para as lutas de hoje – “Meu nome é agora, meu momento é agora”.
“Não é de hoje que venho gritando Brasil. Já comecei brigando pelo Brasil, sempre foi a minha luta. Briguei pelas mulheres, e por esse país amado. Não tem lugar mais lindo, mais maravilhoso que esse país”.